No dia 28 de março de 2000, o então Deputado Federal Almir Morais Sá (PPG/RR), apresentou Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215/2000), publicada no Diário da Câmara dos Deputados no dia 19 de abril do mesmo ano, Dia do Índio. Segundo esta proposta, passaria a ser competência exclusiva do Congresso Nacional: “aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”. Ainda segundo esta proposta: “Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei.”

É de amplo conhecimento que o processo de regularização das mais de 683 terras indígenas cadastradas no Sistema de Terras Indígenas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é realizado a partir de estudos multidisciplinares consistentes e rigorosamente regulamentados (vide Decreto 1775/1996), com vistas a cumprir o Artigo 231 da Constituição Federal (CF), o qual estabelece o reconhecimento das terras indígenas como fundamentais à sobrevivência física e cultural, assim como ao bem-estar, dos índios no Brasil.

É no mesmo artigo, em seu parágrafo 5º, que é atribuído ao Congresso Nacional o papel de deliberar sobre a remoção dos grupos indígenas apenas: “em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população” e assegurar seu “retorno imediato logo que cesse o risco”.

Torna-se evidente, portanto, a importância constitucionalmente atribuída às terras tradicionalmente ocupadas para a proteção dos índios enquanto sociedades culturalmente distintas em interação com a sociedade nacional, assim como a competência do Congresso Nacional para preservar estas terras e assegurar seu usufruto exclusivo aos povos indígenas. Esta precedência das terras como fundamentais para assegurar a sobrevivência de um povo não resulta de uma ficção antropológica, mas de uma compreensão tanto histórica, quanto jurídica: o estatuto do indigenato, estabelecido desde a Lei nº 601/1850 (a Lei de Terras) e reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. É para efetivar este direito que o Estado, via Ministério da Justiça, realiza processos administrativos e jurídicos, fundamentados por estudos circunstanciados que tem por objetivo indicar a extensão e os limites de uma área imprescindível para a permanência autônoma de um povo segundo seus usos, costumes e tradições, livres das pressões e violências exercidas sobre eles e seus recursos por agentes imbuídos de outra lógica de apropriação, produção e geração de riquezas e desenvolvimento. Trata-se de um direito coletivo que emerge na CF como um ganho jurídico e político para tornar o país uma sociedade mais livre, justa e solidária com populações culturalmente diferentes e historicamente excluídas dos benefícios advindos da formação de um país que via de regra ajudaram a construir e conservar.

Entretanto, quando parlamentares propõem alterar as rotinas administrativas do Poder Executivo que asseguram o usufruto exclusivo de terras indígenas aos seus respectivos povos, observa-se uma inversão nos papéis e poderes, onde o Legislativo se converte no próprio risco aos territórios que se encontram constitucionalmente assegurados. Portanto, poderíamos falar em uma emenda inconstitucional. Ainda assim, para justificar sua proposta, o ex-Deputado Almir Morais Sá, hoje Presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado de Roraima, alegou que:

“No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, verifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio do Poder Executivo – sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros, tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação. No fim e ao cabo, a demarcação das terras indígenas consubstancia-se em verdadeira intervenção em território estadual, com a diferença fundamental de que, neste caso e ao contrário da intervenção prevista no inciso IV do art. 49, nenhum mecanismo há para controlá-la, ou seja, a falta de critérios estabelecidos em lei torna a demarcação unilateral.”

Ao caracterizar o processo de regularização de terras indígenas como “verdadeira intervenção (acrescente-se unilateral) em território estadual”, o deputado aciona o argumento falacioso de que as terras indígenas, do modo como são constituídas, prejudicam os estados pelo alheamento de sua participação no processo. Esta compreensão parte não somente de uma informação incompleta porque o Decreto 1775/96 prevê a participação dos órgãos estaduais nos levantamentos fundiários feitos pelo Grupo Técnico responsável pela identificação e delimitação da terra indígena, como também, da suposição de que a “intervenção federal” se dá contra ou em desfavor dos estados e municípios.

Considerando que ao Congresso Nacional já compete uma série de atribuições relacionadas à exploração de recursos e geração de riquezas em terras indígenas, e também a tramitação de centenas de leis que afetam direta ou indiretamente aos índios, junto aos quais o próprio Congresso deveria promover consultas conforme os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),  ratificados pelo mesmo Congresso, temos que o objetivo da PEC 215/2000 de submeter ao Legislativo a aprovação das terras indígenas e ratificar as já homologadas consiste numa manobra deliberada para fazer das próprias terras indígenas e seus recursos a riqueza (material) da qual os estados e municípios gostariam de se apropriar em detrimento dos direitos e expectativas dos índios.

À recém criada Comissão Especial (CE) caberá emitir um parecer sobre a PEC 215/2000. Esta CE, composta de 20 membros e 20 suplentes, mais um titular e um suplente, passará a desempenhar, se e quando implementada, um papel fundamental para a consolidação do Legislativo como poder ao qual os índios deverão temer, considerando os interesses anti-indígenas ali representados por uma bancada de parlamentares “ruralistas” que enxergam os povos indígenas como minorias detentoras de um excesso de terras em detrimento da nação; ou um poder com o qual os índios poderão contar, pois defensor do direito constitucional dos povos indígenas à proteção federal das terras indígenas contra os processos aniquiladores da diversidade étnica e cultural do país. Para isto, basta reconhecer a inconstitucionalidade da PEC 215/2000.

Para acompanhar a tramitação da PEC 215/2000, acessar: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562

Cristhian Teófilo da Silva
Antropólogo

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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