Na noite de 19 de maio de 2015 recebi a notícia de que três indígenas do povo yuracaré, residentes na comunidade de Nueva Lacea do rio Sécure, estão sendo processados por roubo qualificado pela Procuradoria Municipal de Trinidad, a capital do departamento de Beni – localizado nas terras baixas da Bolívia. A comunidade é uma das sessenta e quatro do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure, o TIPNIS, palco dos principais conflitos políticos nos últimos anos de governo Evo Morales. Em minha última viagem ao TIPNIS fui recebida com muito carinho na comunidade de Lacea, onde estive por cerca de um mês. Ali tive a oportunidade de conversar com os comunarios sobre suas estratégias de resistência aos planos governamentais de construção de uma estrada através do TIPNIS, e entre os tantos assuntos sempre aparece a temática dos decomisos e de outras estratégias de aplicação de sua justiça comunitária.

Acontece que a Bolívia Plurinacional, a Bolívia do Vivir Bien, deveria garantir autonomia política e jurídica às comunidades e territórios indígenas, cenário que está longe de ser realizado. Diante das injustiças recorrentes e através de suas estruturas políticas orgânicas, as comunidades decidem pelo que consideram como solução e acabam tendo de enfrentar na justiça ordinária os custos da sua aplicação: em 2013 acompanhei outro caso de indígenas processados em Trinidad por aplicar sua justiça comunitária, apesar de esse direito estar contido na nova Constituição do país (aprovada em 2009). Há, sobretudo, um problema de jurisdição, já que esses casos deveriam ser processados diante da justiça indígena e não da ordinária.

Os decomisos são estratégias de retomada do controle sobre o território, são confiscos de objetos diversos que têm o intuito de controlar o acesso ao TIPNIS. Desde que os conflitos na região se intensificaram diante da polêmica sobre a construção de uma estrada através do território o acesso à região tornou-se matéria especialmente importante. Têm-se notícias de outros barcos que foram decomisados por entrarem pelos rios Isiboro e Sécure sem a permissão das Sub-Centrais da região. Em 2013, por exemplo, o motor de um barco que rondava um acampamento (notoriamente tentando recolher informações políticas em um momento crítico de disputas) foi confiscado por decisão unânime dos indígenas reunidos. A prática é recorrente e pode ser justificada de diferentes maneiras: se decomisa motores dos barcos que não são bem-vindos; madeiras extraídas ilegalmente; materiais utilizados em práticas de suborno. A prática mobilizada em defesa da autonomia das comunidades sobre seu território ameaçado.

Em abril deste ano, com as proximidades das eleições para governadores, os comunarios de Nueva Lacea confiscaram o motor de um barco de uma deputada indígena eleita pelo MAS, o partido de Evo Morales. A deputada Ramona Moye aportou na comunidade de Lacea sem permissão, mesmo sendo reconhecida a oposição daquela pequena comunidade ao governo de Morales. Ela fazia campanha para o agora governador eleito Alex Ferrier, também partidário do Movimiento al Socialismo do presidente. Diante de tantas hostilidades entre o governo e as comunidades que resistem à construção da estrada no território as relações entre governistas e opositores estão profundamente desgastadas há anos, situação que se manifesta de maneira mais ou menos tensa em qualquer encontro entre os diferentes segmentos políticos. De acordo com o que foi relatado o cabildo da comunidade ficou responsável pelo motor confiscado e decidiu devolvê-lo aos seus donos logo do decomiso. Mesmo assim, e não ocasionalmente depois da eleição do governador MASista, a deputada decidiu dar continuidade ao processo e acusar três indígenas da comunidade (um deles menor de idade) diante da Promotoria Municipal de Trinidad.

Dois aspectos desse episódio são especialmente perturbadores e igualmente graves. O primeiro é a desconsideração do caráter comunal da decisão do cabildo, que implicou na ordem de prisão dirigida a três indígenas. Mesmo que eles tenham protagonizado qualquer ação no comento do confisco, respondiam à deliberação de suas autoridades locais e não deveriam ser individualmente responsabilizados por uma disputa política maior do que eles. Vale dizer que Ermínio e Timoteo, dois dos acusados, já sofreram perseguições de outras ordens e são jurados de morte em algumas regiões do parque. Sua atividade política implica em risco para sua vida e para a de suas famílias, situação inadmissível em qualquer país, mas especialmente em um Estado recentemente refundado como Plurinacional.

O outro aspecto perturbador é a alquimia jurídica que envolve o caso, capaz de ter transformado uma disputa política que deveria ser resolvida diante da justiça indígena em um crime registrado na justiça ordinária. Através das lentes plurinacionais, o episódio não deveria ser enquadrado como roubo, havendo espaço na justiça indígena para que o conflito de perspectivas seja apreciado e solucionado. Quando se apresentaram diante da promotora Lubia Peralta na tarde de ontem (20/05/15) esse argumento foi mobilizado e os indígenas reivindicaram que se aceite que o episódio seja resolvido pela justiça comunitária. Essa será a grande disputa envolvendo a situação.

Quando representantes do movimento indígena acionam a justiça ordinária para resolver um conflito próprio do território dão provas que privilegiam a manutenção de uma suposta estabilidade política de Morales em detrimento do fortalecimento dos avanços que os povos indígenas bolivianos arrancaram do Estado nas últimas décadas. No limite esses segmentos indígenas governistas enfraquecem o proceso de cambio que reivindicam, descaracterizando o significado profundo da plurinacionalização, tal como ela aparecia em 2009 e depois em 2010.

Já não nos servem os discursos heroicos emocionados de Evo Morales. A Bolívia, apesar de alguns avanços institucionais e constitucionais importantes, segue sendo palco de perseguições políticas graves e de práticas de atropelo sistemático aos direitos indígenas. O governo de Evo Morales não responde aos interesses de grande parte do movimento indígena do seu país e de maneira recorrente mobiliza episódios polêmicos como via de criminalização individual de lideranças e de comunarios indígenas. A criminalização que quer passar como aleatória é a outra face da perseguição política daqueles que resistem aos avanços desenvolvimentistas no país doVivir Bien.

Renata Albuquerque de Moraes

Antropóloga e doutoranda (PPGAS/UnB)

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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