Como tem sido amplamente divulgado pelos meios de comunicação e divulgação científica, a crise política, social e econômica da Venezuela, agravada em toda região e mundo pela pandemia da COVID-19, tem acarretado um intenso e constante processo migratório dos venezuelanos para diferentes países da América Latina (Colômbia, Peru, Argentina, Chile e Brasil, principalmente). Considerando a reabertura das fronteiras internacionais decorrente da pressão para a retomada das atividades econômicas associada ao aumento da população imunizada, o movimento diaspórico venezuelano tem se intensificado. Trata-se de um movimento multifacetado, porque decorrente de múltiplas circunstâncias, e pluriétnico, pois reflete a diversidade étnica, cultural e linguística que compõe o povo venezuelano, com destaque para os povos indígenas Pemón, E’ñepá e Warao. Este último, habitante milenar do delta do Orinoco, constitui o segundo maior povo indígena da Venezuela com aproximadamente 50 mil habitantes, o que supera a população indígena mais numerosa do Brasil representada pelos Guarani, e já se encontra refugiado em cidades de todas as regiões do país em um processo dinâmico que se iniciou há seis anos, pelo menos.

Entretanto, o conjunto das ações governamentais diante deste processo tem se mostrado mais reativo do que planejado, denotando uma política precária ante a realidade destes refugiados. Por mais que o governo federal tenha alocado recursos para proporcionar apoio social e atenção médica aos indígenas venezuelanos, estas medidas não são suficientes sem uma prestação de serviços públicos de acolhimento e medidas de enfrentamento à discriminação e segregação racial, assim como ao racismo institucional que permeia a gestão dos abrigos em todo país. Na verdade, em função de sua grandeza demográfica e dispersão, os Warao tem conhecido de perto a dura realidade dos indígenas em contextos urbanos no Brasil que são alijados de políticas específicas para assegurar seus direitos fundamentais enquanto cidadãos ao mesmo tempo que respeitando seus usos, costumes e tradições.

É precisamente a busca de recursos e serviços inexistentes ou precários nas terras tradicionalmente ocupadas, sem perder o vínculo com estas, o que caracteriza a fixação de residência de mais de 315.180 indígenas nas cidades (Censo IBGE, 2010). A presença dos Warao na condição de refugiados ao lado de outros povos indígenas transfronteiriços, desterritorializados ou em trânsito pendular nas cidades configura uma realidade que deveria obrigar o estado a formular um novo ciclo de políticas públicas indigenistas para indígenas nas cidades, caso houvesse o compromisso verdadeiro com os direitos destes povos, famílias e pessoas. Neste sentido, será fundamental ter em mente que os indígenas provenientes dos países vizinhos buscam aqui o mesmo que tem buscado há décadas nos próprios países de origem, e que vem a ser o mesmo que buscam os próprios indígenas do Brasil, os meios de manterem suas formas tradicionais de reprodução física e cultural e assim exercerem o direito constitucional e internacionalmente assegurado a autodeterminação e ao etnodesenvolvimento seja nas aldeias ou nas cidades.

O Brasil tem se apresentado como uma alternativa promissora com seu vasto território, economia de mercado e a presença de outros 255 povos indígenas, falantes de 160 línguas e dialetos, com os quais muitos destes povos mantém relações de troca e parentesco, quando não são membros de um mesmo povo habitante de mais de um país. Entretanto, ao contrário de outros indígenas com vasta experiência com o indigenismo brasileiro, os Warao não contavam em seu caminho com a forte tradição tutelar que caracteriza as relações do estado, das igrejas e da sociedade civil com os povos indígenas no Brasil. Esta tradição é diretamente responsável por inúmeros crimes de tutela que tem violado direitos e obstaculizado as perspectivas de sobrevivência e autonomia dos povos indígenas no país. Lamentavelmente, a situação dos indígenas Warao refugiados no Distrito Federal é um dos mais recentes casos dessa longa história. 

Em fins de 2020 e início de 2021, cerca de 80 indígenas Warao foram acolhidos, em caráter provisório e temporário, no Centro de Tecnologia Social Raio de Luz (São Sebastião/DF) sob a gestão da Cáritas, uma entidade ligada a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a partir de um projeto firmado com o Governo do Distrito Federal (GDF) e que conta com recursos provenientes de emenda parlamentar da Câmara Legislativa do DF. Isto ocorreu após sucessivas tentativas mal sucedidas de reassentamento dos Warao pelo GDF iniciadas em 2017.

Hoje, após oito meses de transferência dos Warao para o abrigo, como é chamado, e conforme a verificação dos defensores públicos da União e do Distrito Federal no último dia 8 de novembro foram verificadas as péssimas condições de acolhimento do local. O abrigo que deveria suportar no máximo 80 pessoas, conta com pelo menos 188 indígenas, dentre mulheres, crianças e pessoas idosas. O quadro de saúde é alarmante já sendo registrado o falecimento de uma criança de 5 anos por uma doença respiratória tratável.

Em ofício do último dia 17 de novembro e encaminhado para o Ministério Público Federal (MPF), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que possui sede no campus Darcy Ribeiro da UnB, acrescentou: 

“A perda da criança trouxe sofrimento e preocupação na comunidade Warao de Coromoto. A falta de comunicação dos gestores do abrigo com as lideranças indígenas e os órgãos competentes de resguardo dos direitos indígenas – neste caso, Fundação Nacional do Índio e Secretaria Especial de Saúde Indígena – tem prejudicado ações de acompanhamento e atenção adequada à saúde. Fato que tem promovido a responsabilização das mães e das famílias indígenas pelo adoecimento e perda de seus filhos, quando estamos detectando omissão e inação das instituições e órgãos públicos envolvidos.”

Ainda de acordo com a ABA:

“Além da situação descrita no DF, foi publicada em 13 de novembro, em diversos veículos informativos, a notícia sobre a existência de um projeto para transferir os habitantes indígenas (das etnias Warao, Eñepa e Karina) dos abrigos Pintolândia, Nova Canaã e Tancredo Neves para o abrigo Rondon 3, que comporta mais de 1500 pessoas, não indígenas. As lideranças indígenas temem que a unificação dos abrigos aumente a situação de precarização e descaso e protestaram essa semana em Boa Vista.” 

Estas informações atualizam relatos da historiografia e etnografia das relações interétnicas nos últimos 100 anos, desde a instalação do indigenismo oficial brasileiro com o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Este órgão foi substituído pela FUNAI em 1967, após uma série de escândalos de corrupção e maus tratos aos povos indígenas, o que foi denunciado pelo Relatório Figueiredo no mesmo ano e que expôs uma série de crimes de tutela que persistem até hoje sem a devida apuração e reparação aos povos indígenas.

Ontem e hoje, observa-se que a “proteção” aos indígenas no âmbito dos postos indígenas, dentre outros estabelecimentos, encobria práticas de violação da autonomia dos povos indígenas, quando não de privação de liberdade, tortura e maus tratos. Nos abrigos para indígenas refugiados já se pode notar atualmente a recorrência com que as lideranças indígenas legítimas e tradicionais são desrespeitadas e ignoradas, dando-se poder de decisão sobre suas vidas a instituições e agências intermediárias. Também é notável como são instituídas arbitrariamente novas “lideranças” para se contrapor àquelas que não “cooperam” com agentes indigenistas. Há relatos de distribuição desigual de recursos e serviços, inclusive de auxílio social e de saúde. Decisões de remoção e transferência de famílias e expulsão de pessoas dos abrigos também tem ocorrido sem consulta livre e informada e com o apoio de lideranças cooptadas. Estas e outras ações paternalistas e violentas, que atentam contra as formas de organização social e política dos povos indígenas, cumprem, como é sabido, o único propósito de tornar os indígenas clientes de ações assistencialistas e assimilacionistas e são um breve resumo da história das relações entre indígenas e não-indígenas no Brasil e que parece envolver tragicamente os Warao “acolhidos” nas cidades brasileiras nesta segunda década do século XXI.

Diante desse histórico, caso não se promova uma nova orientação e prática intercultural de respeito a autonomia cultural e política dos Warao, dentre outros indígenas em contexto de refúgio nas cidades, assistiremos, aturdidos e em cumplicidade, à crônica de mais uma tragédia indígena anunciada.

Trata-se de ação complexa e delicada para conciliar o acolhimento aos indígenas refugiados às demais ações de assistência e proteção de direitos indígenas em conformidade com a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT. O primeiro passo implica, simples e eficazmente, escutar de forma respeitosa, o que as lideranças indígenas tem a dizer, conhecer seus anseios e planos de vida, para em seguida trabalhar em colaboração com elas por um futuro mais digno, senão para todos, ao menos para as crianças Warao. Afinal, o que histórias de refúgio nos ensinam é que a condição de refugiado não é o problema de alguns, mas uma realidade que afeta o mundo como um todo, nos obrigando a refletir como queremos que ele seja para cada um de nós hoje e amanhã.

Cristhian Teófilo da Silva

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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