Conforme amplamente divulgado pela imprensa, a Casa Civil pediu ao Ministério da Justiça  (MJ) a suspensão dos processos de regularização fundiária de terras indígenas nos municípios de Terra Roxa e Guaíra no Paraná (Brasil). A Casa Civil utilizou as divergências de um suposto estudo da Embrapa para desqualificar os estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) para fundamentar sua solicitação.   Este episódio ocorre após o constrangimento sofrido pela presidente Dilma Rousseff em abril último, quando foi alvo de vaias por parte de produtores rurais em Campo Grande (MS). Na ocasião, ouviram-se gritos de “demarcação não”, um protesto explícito contra os processos de demarcação de terras indígenas no estado que visam assegurar uma reparação histórica aos povos indígenas Guarani e Kaiowá. Entretanto, se considerarmos que a própria presidente explicitou sua opinião de que os processos de demarcação de terras indígenas deveriam ser submetidos ao escrutínio do Ministério de Minas e Energia, pode-se supor que as vaias foram recebidas mais como um lembrete para que a presidente retomasse suas disposições pessoais sobre o assunto e menos como uma protesto dos produtores rurais.

A manifestação da Casa Civil sobre o assunto foi entendida exatamente como uma reação do governo aos ruralistas insatisfeitos. Mas, existem outros elementos que permitem entrever uma motivação mais ampla.

A movimentação da Casa Civil insere-se em uma série de atos, portarias, emendas, reformas, projetos de lei e programas oficiais etc. que tem em comum a promoção de efeitos diretos ou indiretos sobre o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil, o que expressa em última instância a contrariedade de certos parlamentares, jurisprudentes e do próprio governo com o direito dos povos indígenas às suas terras definidas constitucionalmente como um bem público federal.Ainda que não se possa creditar o início desta série de ações e medidas às dezoito condicionalidades estabelecidas em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para assegurar a regularização em área contínua da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em Roraima, ela certamente encontrou ali seu “ponto ótimo” de concertação. As condicionalidades, pensadas como dispositivos para pacificar as divergências que acirravam os conflitos interétnicos promovidos por diversos atores e grupos do agronegócio de Roraima, do governo estadual, e do Exército brasileiro, cada um com  posições próprias sobre como a área deveria ser demarcada, promoveram, dentre outras garantias e proibições próprias àquela situação (como maior participação do estado na demarcação e ingresso livre das Forças Armadas na área), a ideia de que as condicionalidades traçadas para o caso seriam aplicáveis a outros casos no país, isto é, que as condicionalidades possuiriam caráter vinculante. Daí a Portaria 303 da AGU e toda pressão para que os processos de demarcação de terras indígenas em curso fossem revistos em prol de maior ingerência por parte dos estados e municípios em detrimento do processo administrativo conduzido pela Funai. Esta matéria será julgada em outubro de 2013, pelo STF.Diante disso, se somarmos: 1) a insatisfação de produtores rurais contrários à demarcação de terras indígenas, em particular no Paraná e no Mato Grosso do Sul, ao 2) constrangimento do governo com a lentidão de sua própria política desenvolvimentista, prejudicada, a exemplo de Belo Monte, pelos protestos dos trabalhadores das obras, de povos indígenas, de populações tradicionais, de ambientalistas etc., apoiados que estão pela legislação ambiental e sociocultural existente, e à 3) necessidade de negociação de apoio para aprovação de medidas que viabilizem os empreendimentos econômicos (como a MP 595, Medida Provisória dos Portos, a qual atende aos interesses dos ruralistas e mineradoras), seremos obrigados a questionar pela real “razão de Estado” que levaria a Casa Civil (justamente o órgão de articulação e integração das ações governamentais e observador da constitucionalidade destas ações) a buscar suspender processos de regularização fundiária de terras indígenas e propor a modificação das regras administrativas do processo demarcatório.

O que nos ensinam as declarações e solicitações da ministra Gleisi Hoffman sobre a concepção de governabilidade que orienta a Presidência da República? Seria a barganha dos direitos territoriais constitucionais dos povos indígenas com certas bancadas do Congresso uma estratégia para aprovação de medidas provisórias vitais ao programa desenvolvimentista do governo federal? Em caso afirmativo, o cálculo político seria o de que é “menos pior” negociar com os direitos indígenas, contrariando moralmente apenas os próprios índios e uma “minoria ruidosa” que os apóia nacional e internacionalmente, do que defender abertamente a Constituição contra interesses de setores produtivos do país.

De qualquer modo, cabe agora a Funai e aos povos indígenas lidar com as consequências desse “fogo amigo”, contrário às demarcações, disparado a partir de outros órgãos e poderes estatais com os quais deveria contar como aliados.  Se até o momento, as terras indígenas eram obstaculizadas por adversários mais ou menos previsíveis, que passaram a ter seus contraditórios acolhidos pelo Decreto 1775/1996 do MJ, com a participação técnica da empresa agropecuária estatal nos processos de demarcação de terras indígenas, será à outra face do Estado (desenvolvimentista) que o Estado (de Direito) deverá responder. Neste cenário de Estado contra o Estado, em que o órgão oficial de assistência ao índio é deslegitimado pela Casa Civil como “parte interessada”, ao invés de ser fortalecido como instituição encarregada dos processos de regularização fundiária de terras indígenas, quem continuará sofrendo e suportando as consequências serão os próprios indígenas.Suspensão, como se sabe quimicamente, é um tipo de mistura formada por duas ou mais fases. A suspensão governamental da demarcação de terras indígenas decorre da imiscibilidade destas duas “fases/faces” do Estado, onde a primeira vem se provando cada vez mais forte e dominadora, leia-se autoritária, que a segunda. A arbitrariedade do governo com relação aos processos de demarcação de terras indígenas apenas demostra quanto o governo atual está disposto a perder em legitimidade para fazer valer politicamente a vontade de desenvolvimento, esquecendo-se que nenhum desenvolvimento será bom se não promover a justiça social, cujo conceito está interpretado em artigo publicado na Revista Jurídica Virtual (Volume 5, número 48, maio/2003) da Casa Civil nos seguintes termos:

“A ordem econômica deve visar assegurar (sic, grifo no original) a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social. O objetivo da ordem social é o próprio bem-estar social e a justiça social. A primeira deve garantir que o processo econômico, enquanto produtor, não impeça, mas ao contrário, se oriente para o bem-estar e a justiça sociais. A segunda não os assegura, instrumentalmente, mas os visa, diretamente. Os valores econômicos são valores-meio. Os sociais, valores-fim.”

(Tércio Sampaio Ferraz Jr.: 35 apud Luís Fernando Barzotto, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm, acessado em 15 de maio de 2013).Cristhian Teófilo da Silva
Antropólogo

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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