Disponível em Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas em 20 de outubro de 2020Em artigo publicado em 2018, observei que a relatoria do ministro Carlos Ayres Britto no caso da homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS), que embasou extensamente a elaboração das condicionantes aplicadas para a deliberação sobre o caso, acabou por construir um “cavalo de Troia” no âmbito dos direitos dos povos indígenas no Brasil. E isso se deu, sobretudo, pela definição do dia 5 de outubro de 1988 como “marco zero” da “ocupação tradicional”, o que anula histórias extremamente violentas de massacres, expropriações e deslocamentos forçados de comunidades indígenas de seus territórios.As dezenove condicionantes colocaram irreversivelmente sub judice os procedimentos demarcatórios de terras indígenas, decorrentes do reconhecimento constitucional do usufruto exclusivo dos povos indígenas às suas terras. E, consequentemente, deflagraram um quadro generalizado de desconstrução do direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas, sejam elas já constituídas, das outras em constituição e daquelas por constituir, configurando, nas palavras do antropólogo João Pacheco de Oliveira, a: “maior ofensiva contra a política indigenista na história brasileira”.No caso da decisão relativa à PET n. 3.388, o relator, ministro Carlos Ayres Britto, foi favorável em seu voto à demarcação em área contínua da TIRSS, reafirmando uma série de consensos administrativos em torno da matéria, nomeadamente: (1) “a condição indígena da área demarcada”; (2) “que as terras indígenas constituem bens da União”; (3) “que somente à União compete instaurar, dar sequência, concluir e efetivar esse processo por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo Federal” etc. Entretanto, ao relativizar a abrangência da “exclusividade” do usufruto indígena sobre suas terras e recursos, as condicionantes limitaram a extensão espacial de sua autonomia, abrindo espaço para a delimitação temporal da mesma ao enunciar o marco temporal para efetivação desse direito circunscrito à data de promulgação da Constituição de 1988. Com isso, o voto do ministro não fez frente ao poder simbólico das dezenove condicionantes. Não por outra razão, o Advogado-Geral da União Luís Inácio Adams promulgou a Portaria n. 303, de 16 de julho de 2012, com o intuito de tornar vinculante (leia-se jurisprudencial ou disciplinador no âmbito da AGU) a todos os processos demarcatórios a “tese do marco temporal”, o que foi reiterado pelo parecer n. 001/2017 da mesma AGU.Tal feito engendrou nova controvérsia com relação ao caráter vinculante ou não dessa interpretação, o que resultou em Acórdão do STF publicado em 23 de outubro de 2013, tendo como relator o ministro Roberto Barroso, quando se rejeitou a vinculação do “marco temporal” a outros processos demarcatórios no país. Mais uma vez, isso não foi suficiente para deter os efeitos das condicionantes ora analisadas e a “tese do marco temporal” sobre outros agentes e agências estatais dos três poderes e nas três instâncias da federação (municipal, estadual e federal). Isso comprova a importância do “contexto da situação” para assegurar eficácia persuasiva a certos rituais. Não basta que os atores do rito o reencenem. O contexto e a estrutura das relações de poder são decisivos para assegurar o sucesso da performance e tornar irreversíveis seus efeitos.

Esta constatação segue pertinente para o caso do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, previsto para 28 de outubro próximo, quando o STF irá  julgar a matéria com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031). Novamente, o STF irá se debruçar sobre os significados jurídicos dos direitos constitucionais dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam. Neste recurso, conforme noticiado em 06 de maio de 2020:

“a Fundação Nacional do Índio (Funai) questiona decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que julgou procedente ação de reintegração de posse de área em Santa Catarina. A área, declarada administrativamente como de ocupação tradicional dos índios Xokleng, está localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás.

O recurso teve repercussão geral reconhecida em fevereiro de 2019. No final de março de 2020, com a pandemia instalada, a comunidade indígena Xokleng da Terra Indígena Ibirama La Klaño e diversas partes interessadas admitidas pelo relator no recurso pediram a suspensão nacional dos processos que tratam do mesmo tema. A medida está prevista no artigo 1035, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil.”Esperamos que a marcha de desconstrução legislativa e jurídica dos direitos constitucionais dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam seja definitivamente impedida e revertida ou passaremos da maior “ofensiva contra a política indigenista da história”à maior anistia de invasões ilegais e a consequente transferência de terras indígenas para não indígenas que se tem conhecimento no continente.Cristhian Teófilo da SilvaAntropólogoTexto livre adaptado do artigo: “A homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol e seus efeitos: Uma análise performativa das 19 condicionantes do STF”. Revista brasileira de Ciências Sociais [online], 2018, vol.33, n.98.

Fonte: http://ela.unb.br/pt-br/laboratorios/laepi/textos-livres

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