A dificuldade para a efetivação de medidas protetivas também foi discutida durante audiência pública realizada nesta segunda-feira

 

“Violência” é um vocábulo que não possui tradução literal na língua falada pelos guarani. Contraditoriamente, traduz em vários níveis a realidade da maioria das comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul. Povos indígenas tradicionais, originários das terras que nos cercam, que precisam lidar com uma coleção de vulnerabilidades difícil de quantificar. Nesta segunda-feira, 14 de dezembro, uma dessas vulnerabilidades foi apresentada e discutida durante audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul (DPMS): violência doméstica.

O evento virtual reuniu representantes do poder público com o objetivo principal de ouvir as demandas de mulheres Kaiowá e Guarani, além de mulheres migrantes, especialmente haitianas e venezuelanas, que vivem na região da Grande Dourados. Grupos muito diferentes entre si mas com uma peculiaridade importante em comum: a barreira linguística. Da série de dificuldades enfrentadas por essas mulheres em situação de violência, a falta de intérpretes nos locais de atendimento (da delegacia de polícia à defensoria pública) é uma das mais sensíveis.

Segundo Jaqueline Aranduhá Kaiowá, a Kuñangue Aty Guasu (Assembleia de Mulheres Kaiowá e Guarani) vem desde 2017 reunindo e formalizando suas demandas junto ao poder público, com quem tentam estabelecer diálogo. No entanto, as reivindicações seguem sendo engavetadas. “É impossível listar todos os tipos de violência que as mulheres sofrem dentro das aldeias. Em 2020, vimos um aumento significativo da violência doméstica assolar nossas parentes, que seguem sem acesso à proteção do Estado. A própria base de apoio da Kuñangue Aty Guasu têm acolhido essas vítimas – sem qualquer apoio ou respaldo do poder público –, muitas sem a menor condição de voltar para suas aldeias por permanecerem ameaçadas.

Intolerância religiosa – Mais um entre os vários tipos de violência sofridos por mulheres indígenas, a intolerância religiosa assola especialmente as Ñandesy – mulheres idosas, responsáveis pelos rituais tradicionais (algo como “rezadoras”). Ñandesy Lucia, parteira de Guapo’y em Amambai (MS) que sequer fala português, conta que vive constantemente sob ameaça, inclusive por parte das lideranças da aldeia onde mora, que seguem religião evangélica. Segundo ela, os homens fazem o possível para silenciar as mulheres, sejam patrícias ou não indígenas, por não aceitarem a prática dos rituais tradicionais.

Desinformação também é violência – Quando se trata de mulheres migrantes vítimas de violência, entram em cena particularidades frequentemente desconsideradas por outros grupos sociais. Geralmente, elas vêm para o Brasil apenas acompanhadas de marido e filhos e, via de regra, não conseguem trabalho. Agredidas pelos companheiros, enfrentam o medo de perder o sustento, a total inexistência de qualquer coisa parecida com rede de apoio, e a completa falta de informação sobre direitos e deveres.

Segundo a professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Luciana Campos, 80% das migrantes venezuelanas não conhecem a Lei Maria da Penha. Isso faz com que elas aceitem como verdadeiras ameaças infundadas, como precisar ter filhos nascidos no Brasil para não serem expulsas do país ou mesmo que, em caso de violência reincidente, a pessoa presa será ela, e não o agressor.

Lei Maria da Penha – De importância inquestionável para as mulheres brasileiras – pelo menos a maior parte delas –, a Lei Maria da Penha ainda carece de efetividade junto a grupos específicos. Este foi outro ponto abordado durante a audiência pública, especialmente no tocante ao acesso das mulheres indígenas e migrantes às delegacias de polícia e, numa fase posterior, à efetividade das medidas protetivas instauradas. Foi citado o caso de Valdineia Jorge Aquino, mulher indígena da aldeia Panambizinho agredida pelo ex-marido, que tem histórico de estupro e feminicídio. A Justiça instaurou medida protetiva, obrigando o agressor a se mudar para uma aldeia vizinha. Valdineia segue recebendo ameaças constantemente, sem poder voltar para a comunidade onde morava em função da proximidade territorial com o agressor.

Deliberações – Das discussões, restou consolidada a atual falta de estrutura do poder público para acolher adequadamente mulheres indígenas e migrantes vítimas de violência doméstica na região de Dourados. No entanto, como ressaltado pela juíza Jacqueline Machado, representante da Coordenação da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Família do Tribunal de Justiça de MS, não basta dizer que não há condições e pronto. “Nossa obrigação é estudar a problemática a fundo, traçar estratégias, parcerias, a fim de viabilizar soluções. Nem sempre a solução será aquela que julgamos ideal, mas é possível que o debate nos leve a modelos alternativos de atendimento. Modelos que forneçam uma nova perspectiva a essas mulheres atravessadas por tantas vulnerabilidades”.

Além de atuar para viabilizar a presença de intérpretes nos órgãos públicos, os participantes da audiência pública trabalharão na consolidação das demandas e propostas, atuando juridicamente para estabelecer uma relação mais justa com essas vítimas.

Além dos que foram citados anteriormente, participaram da audiência pública as seguintes pessoas: Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais); Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador da República em Dourados e coordenador do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção de Igualdade Racial do MPF; Daniele Osório, defensora regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União (DPU) em MS; Neyla Ferreira Mendes, coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e de Igualdade Racial e Étnica (Nupiir) da Defensoria Pública do Estado de MS; Thaís Dominato Silva Teixeira, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de MS; Cel Ary Carlos Barbosa, secretário adjunto da Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública; Luciana Azambuja, subsecretária estadual de Políticas Públicas para Mulheres; Izonildo Gonçalves, promotor de Justiça; Lupércio Degerone Lucio e Paula Ribeiro Santos, delegados de Polícia Civil; Ronea Maria Machado Batista, advogada e presidente da Comissão de Violência Doméstica da OAB; irmã Rosane, da pastoral do Migrante; Jean Kenson Jolne, migrante venezuelano e intérprete da Prefeitura de Dourados; e Fabiana Fernandes, arte educadora e representante não indígena da Kuñangue Aty Guasu.

A íntegra da audiência pública está disponível no YouTube, no canal da Escola Superior da Defensoria Pública de MS.

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