Os Laboratórios e Grupos de Pesquisa da Universidade de Brasília, que abaixo assinam, diante do anúncio do Ministro da Educação, de ofertar apenas 800 bolsas do Programa Bolsa Permanência para estudantes indígenas e quilombolas, com uma demanda de 2500 novos estudantes e limitação de novas inscrições apenas para o ano de 2018, vêm a público manifestar preocupação com o nítido distanciamento das diretrizes constitucionais acerca do direito à educação e de políticas para a redução das discriminações sociais, regionais e etnicorraciais, bem como pelo descumprimento de preceitos da Convenção 169 da OIT/1989 regulamentada pelo Decreto nº 5.051 de 2004.

Um dos importantes avanços em termos da política pública educacional foi iniciado no ano de 2004, ao ser adotado o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído com o objetivo de criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, juntamente com o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), orientado por ações de garantia da permanência na educação superior pública. Tais desdobramentos surgem da constatação de que a democratização do direito à educação requer esforços para minimizar os empecilhos ao ingresso e, simultaneamente, a operacionalização de estratégias para incidir na permanência de sujeitos sociais étnica e culturalmente diversos e, em razão de exclusão a que foram submetidos historicamente, tornaram-se vulneráveis socioeconomicamente.

Neste marco as Universidades implementaram os programas internos de bolsas e outros auxílios com a dotação orçamentária do PNAES,para assegurar a permanência de estudantes em situações de vulnerabilidade social e econômica, como medida compensatória em relação às desigualdades socioeconômicas que se constituíram, ao longo do tempo, como entraves para a consolidação do direito à educação no país, derivados, principalmente dos fatores etnicorraciais.

Com este cenário, e impulsionado pela articulação social dos\das estudantes indígenas e quilombolas chegou-se à criação do Programa de Bolsa Permanência (PBP) instituído em 2013, por meio da Portaria nº 389, de 9 de maio de 2013, com recorte, não só na questão socioeconômica, mas principalmente, na questão etnicorracial, para garantir a permanência de estudantes indígenas, negros e quilombolas. Este programa teve como fundamento a democratização do acesso ao ensino superior, por meio da adoção de medidas complementares ao ingresso. É, assim, parte de uma política governamental que visa compensar a disparidade socioeconômica, mas é orientada de fundo pelo dever de reparação aos grupos, comunidades e povos, privados de direitos em razão de suas identidades étnicas e raciais.

Tendo por finalidade subsidiar as reflexões e as tomadas de decisões acerca do assunto destacamos que esse programa é, assim, pilar fundamental da política de ações afirmativas.

A desigualdade no acesso à universidade está fortemente presente também quando analisados os dados por raça/cor. De acordo com o IBGE, em 2015, 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior. O número equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram 26,5% em 2015. A pesquisa do IBGE também mostra que os anos de ensino influenciam na renda, quanto maior a escolaridade, maior o rendimento. O acesso à universidade de povos e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, apresenta ainda maior restrição, o que demanda políticas concretas para o rompimento dessa desigualdade.

Assegurar a permanência por meio de uma bolsa de estudos, para custear despesas fora do local de moradia e residência, aos indígenas e aos negros, com destaque para os remanescentes de comunidades de quilombos, deve ser entendida como uma medida obrigatória, dentro do dever constitucional de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, bem como ao de garantir o acesso aos níveis mais elevados de ensino, e em atenção ao princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência (arts 215, 216, 205, 208 -V da CF/88) . Não é, portanto, uma ação de mera liberalidade, discricionária, factível de ser eliminada sem ponderar o impacto social negativo que acarretaria. Importante lembrar que o ensino superior brasileiro historicamente privilegiou o ingresso de estudantes com renda média de oito salários mínimos, situação que incide no seu caráter excludente e elitista.

Por isso, o programa de bolsa permanência é uma medida sensível para alavancar a democratização do ensino superior mediante a criação de oportunidades concretas para segmentos cuja exclusão não é de fundo da ordem socioeconomîmica. A vulnerabilidade social e econômica que coloca os estudantes indígenas e quilombolas é consequência da discriminação etnicorracial, e por esta razão, e não outra, estão eles na posição de titular do direito a essa bolsa diferenciada, sendo esta parte indissociável da política afirmativa de acesso à educação superior. A deficitária presença de estudantes indígenas e quilombolas nas universidades brasileiras é resultado dos obstáculos concretos derivados da prolongada e sistemática prática social e institucional de anulação de direitos.

O ingresso de estudantes indígenas e quilombolas nas Universidades, em número crescente na última década, não é mera concessão de Estado. É resultado da mobilização permanente, da luta por direitos e da incansável afirmação étnica e cultural contra o racismo institucional e a exclusão. A execução de políticas de ampliação de vagas para inclusão no ensino superior exige que venha acompanhada de políticas de permanência, sob pena de esvaziar a própria finalidade para a qual foi instituída e desconfigurar o seu propósito.

A oferta reduzida de bolsas para assegurar a permanência dos estudantes indígenas e quilombolas é indicativo de interrupção dessa política, e se mostra como descumprimento de preceito fundamental, com evidências de racismo institucional e de insensibilidade governativa, desconsiderando o melhor interesse dos/das estudantes indígenas, que sequer foram informados ou consultados sobre as modificações no Programa, em nítida afronta aos preceitos da Convenção OIT nº 169/1989.

A interrupção do programa, com a redução do número de inscrições, manifestada mediante o anúncio da redução do número de bolsas, configura um ataque a cidadania e à democracia, levando à quebra na confiança no Estado, inaceitável dentro dos princípios republicanos e democráticos. E esta situação de inconstitucionalidade permanece, mesmo com a edição da Portaria nº 560, de 14 de junho, pois autoriza a abertura de novas inscrições no PBP apenas para o ano de 2018.

Não há segurança alguma de que o Programa continue em 2019, e deste modo, os/as estudantes serão novamente surpreendidos com medidas de redução do numero de bolsas ou até mesmo a extinção do programa, que levará a prejuízo irreparável, pois lhes retira direito a educação superior.

A continuidade de políticas afirmativas voltadas para o acesso e permanência no ensino superior é fundamental diante de desigualdades construídas historicamente e conservadas dentro da estrutura racialista, que conservam as injustiças. Não podem aquelas se restringir a um aspecto apenas, uma vez que abrangem direitos multifacetados, devendo ser garantidos por meio de planos de ação, conexos, que respondam às demandas específicas dos/das estudantes, que em sua maioria frequentam universidades distantes dos locais de moradia tradicional de seus povos e comunidades. Sem isso não há como se falar em respeitar os costumes, tradições e organização social, pois demandaria que tivessem meios próprios de manutenção da vida na cidade para fins de estudo.

A continuidade do programa de concessão de bolsas não estão a recursos públicos aleatórios, e sim a rubrica específica, no âmbito cultural e da educação, com repasse de recursos orçamentários específicos, e se projeta, assim, para garantir o acesso à educação de qualidade, justamente por seu aspecto de política de reparação, fator que diferencia o auxílio financeiro como medida de mera de compensação financeira.

Ponderamos ao Ministério da Educação, que cumpra o dever constitucional e ético de assegurar a continuidade da política de permanência dos/das estudantes indígenas e quilombolas nas Universidades como medida permanente e eficaz para dar concretização ao direito à educação nos níveis mais elevados, como determinam os preceitos constitucionais.

Assinam a presente nota os seguintes Laboratórios e Grupos de Pesquisa:

LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM MOVIMENTOS INDÍGENAS, POLÍTICAS INDIGENISTAS E INDIGENISMO (LAEPI/UnB), do Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA/UnB).
LABORATÓRIO DE ANTROPOLOGIAS DA T/TERRA (T/TERRA), do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia (PPGAS-DAN/UnB).
GRUPO DE PESQUISA EM DIREITOS ÉTNICOS E ESCRITÓRIO JURÍDICO PARA A DIVERSIDADE ÉTNICA E CULTURAL (MOITARA/JUSDIV), da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO BRASILEIROS (NEAB/UnB), vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM/UnB).
LABORATÓRIO E GRUPO DE ESTUDOS EM RELAÇÕES INTERÉTNICAS (LAGERI), do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.
OBSERVATÓRIO DOS DIREITOS INDÍGENAS E POLÍTICAS INDIGENISTAS E ESCRITÓRIO SOCIO-ANTROPOLÓGICO PARA A DIVERSIDADE ÉTNICA E CULTURAL (OBIND/EDIV), do Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasilia.
GRUPO DE MONITORAMENTO EM EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE (OBIND), Departamento de Estudos Latinoamericanos da Universidade de Brasília.
NÚCLEO DE ESTUDOS EM CULTURA JURÍDICA E ATLÂNTICO NEGRO (MARÉ), da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
INSTITUTO DE INCLUSÃO NO ENSINO SUPERIOR E NA PESQUISA, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do CNPq, Universidade de Brasília.
LABORATÓRIO DE VIVÊNCIAS E REFLEXÕS ANTROPOLÓGICAS: DIREITOS, POLÍTICAS E ESTILOS DE VIDA (LAVIVER), do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia (PPGAS-DAN/UnB).
MESTRADO EM SUSTENTABILIDADE JUNTO A POVOS E TERRITÓRIOS TRADICIONAIS (MESPT), da Universidade de Brasília.
NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM POLÍTICA SOCIAL (NEPPOS), da Universidade de Brasília;
GRUPO DE ESTUDOS POLITICO-SOCIAIS (POLITIZA), da Universidade de Brasília.
GRUPO DE ESTUDO E PESQUISA EM POLÍTICAS PÚBLICAS, HISTÓRIA, EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS E DE GÊNERO (GEPPHERG), Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.

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