Por João Francisco Kleba Lisboa
Norte não é com M
(“Belém-Pará-Brasil”, Mosaico de Ravena)
A última pesquisa de intenção de voto para presidente, realizada pelo PoderData entre 16 e 18 de janeiro e divulgada no dia 201, em que pese apontar ampla e crescente vantagem de Lula sobre Bolsonaro, indicou que o segundo se sobressai ante o primeiro na região Norte do país (46% contra 37%), onde obtém sua melhor pontuação. A pesquisa indica ainda que no Sul a disputa está empatada, com 27% para cada (Moro ali tem 23%), e no Centro-Oeste Bolsonaro tem 36% e Lula 35%. Lula lidera no Sudeste (40 a 28) e Nordeste (57 a 22).
A pergunta que não quer calar é: por que Bolsonaro lidera justamente na região Norte, que abriga o bioma amazônico e tem boa parte de seu território coberto por terras indígenas e unidades de conservação? Tanto a floresta como os povos indígenas, bem o sabemos, estão entre os principais alvos da depredação praticada pelo governo Bolsonaro, e já eram figuras frequentes nas bravatas e declarações que o então Deputado e candidato Jair Messias lançava para movimentar sua base de apoiadores, como a já famosa “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, proferida no clube Hebraica em 2017. Nessa toada, os estados do Acre, Roraima e Rondônia (assim como a sulista Santa Catarina) deram mais de 70% dos votos para Bolsonaro no segundo turno de 2018.
Fazendo jus ao que sua candidatura representava em termos de agenda anti-ambiental, o desmatamento bate recordes ano após ano e o garimpo ilegal, as invasões de terras públicas e a grilagem avançam descontroladamente desde que Bolsonaro tomou o poder. Em Santarém/PA, a maior cidade do interior da Amazônia (desconsiderando as capitais e municípios de regiões metropolitanas), pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará já constataram aumento na concentração de mercúrio no sangue da população2, sem falar na poluição barrenta das águas até então cristalinas de seu principal destino turístico, as praias de Alter do Chão, no rio Tapajós. O estado do Amazonas, por sua vez, foi palco de cenas desesperadoras há um ano, com hospitais colapsando por falta de oxigênio para enfrentar pandemia de Covid-19, apesar dos avisos feitos ao Ministério da Saúde. Em relação aos povos indígenas, a divergência no relatório final da CPI da Covid, no ano passado, foi entre indiciar Bolsonaro por genocídio ou por crimes contra a humanidade3. Ainda assim, a preferência pelo atual ocupante do Planalto permanece no Norte. Tento refletir neste artigo sobre possíveis fatores, tanto estruturais e históricos quanto ocasionais, dessa preferência apontada pelas pesquisas, ou ao menos da surpresa que ela causa em muita gente, listando-os a seguir:
- Em primeiro lugar eu apontaria o histórico de violência da região Norte – uma constatação que visa menos a estigmatizar essa região em relação ao resto do Brasil, que compartilha do mesmo passado colonial, escravocrata e autoritário, do que a desmistificar as visões românticas que ainda possam existir sobre a Amazônia. Esse histórico de violência teria, no entanto, cores locais, revelando-se não apenas em índices estatísticos, mas remontando a acontecimentos que foram moldando essa região, como os apresamentos de escravos indígenas nos séculos XVII e XVIII, a repressão sangrenta ao grande movimento revoltoso dos cabanos, no século XIX, o inferno da borracha entre os séculos XIX e XX, a escravidão em fazendas que dura até os dias de hoje, os massacres de indígenas em nome do “progresso”, cometidos ao longo do século XX e em parte revelados pelo Relatório Figueiredo4, ou de trabalhadores rurais como o de Eldorado dos Carajás, além das execuções de lideranças camponesas e de defensores dos direitos humanos, que demonstram uma cruel continuidade da prática da jagunçagem e da pistolagem no século XXI. A face mais recente dessa violência é a explosão do crime organizado na região, visível nas matanças cometidas por facções rivais nos presídios do Amazonas e de Roraima, ou ainda nas incursões de vingança nas periferias do Pará que ocorrem sempre após a morte de um policial. Os reflexos de toda essa violência, que reprime movimentos populares e indígenas e mina as possibilidades de aprofundar relações horizontais e democráticas na região, estão não apenas nos vínculos atuais do garimpo com o crime organizado, mas na identificação de parte da população com discursos violentos e autoritários. Não à toa, foi no Acre que Bolsonaro soltou outra frase famosa, “vamos fuzilar a petralhada”, em setembro de 2018, menos de um mês após um acampamento de migrantes venezuelanos ser atacado e incendiado pela população de Pacaraima, em Roraima. A violência enquanto linguagem de afirmação, ou catarse coletiva, e ao mesmo tempo meio de intimidação, não é novidade na região (vide a revolta anti-indígena do município de Humaitá/AM, no natal de 2013)5, mas encontrou eco profundo no submundo do bolsonarismo e passou a ser utilizada como arma frequente contra lideranças e povos indígenas, como os Munduruku6 e os Yanomami7, ou contra a própria floresta, como no “Dia do Fogo”, ocorrido em 10 de agosto de 2019.
- A maior parte da população da região Norte se concentra em centros urbanos e, apesar de viver em condições precárias, raramente é considerada pelas políticas ambientalistas ou de demarcação de terras, e não tem lugar na porção que Amazônia ocupa no imaginário do resto do país. Logo, boa parte da esquerda ambientalista – e, num grande mea culpa, dos antropólogos – tende a ver essas pessoas como inimigas naturais de suas bandeiras preferidas, ou no mínimo como sujeitos absolutamente desinteressantes, o que, de certa forma, as joga no colo de quem se coloque no seu extremo oposto, como adversário do discurso preservacionista ou indigenista – aquilo que hoje é Bolsonaro quem melhor sabe fazer. O descompasso entre esses modelos de desenvolvimento para a região foi muito bem retratado por João Moreira Salles em sua série de reportagens-ensaios para a revista Piauí, intitulada Arrabalde8 e publicada entre 2020 e 2021. Não se trata apenas de um embate de ideias ou discursos, mas de encontrar alternativas econômicas concretas e opções de renda imediata para pessoas pauperizadas, vivendo em bairros pouco equipados e sofrendo de inúmeras mazelas, que parecem só se acumular. Abandonados pelo Estado e arregimentados por atividades predatórias e insalubres, como a extração de madeira, o desmate e o garimpo, não é difícil imaginar por que os agentes de órgãos como Funai e ICM-Bio sejam alvo da fúria desses trabalhadores, estimulados por seus patrões ocultos e pelas elites locais que lucram com a destruição. Afirmações de Bolsonaro em defesa das atividades ilícitas e que desautorizam a fiscalização ambiental (falas que contribuem para o desmonte sistemático das políticas de Meio Ambiente9) acionam esse sentimento de estarem à margem da lei – ou melhor, de serem a própria lei, respaldada pelo Presidente da República – e atiçam ainda mais o barril de pólvora em que algumas localidades se transformaram.
- Ligado a esse último fator, e ainda que seja contraditório, há um rancor em parte legítimo contra o Sul do Brasil (conceito que, no Norte, indica mais o Sudeste e lugares como Brasília do que propriamente os estados da região Sul), mas que em vez de se voltar contra os fazendeiros gaúchos que se estabeleceram na região ou os paulistas que controlam os garimpos – atividade que Bolsonaro diz que já exerceu com sua família – acaba se voltando contra figuras meio reais meio imaginárias, como o pesquisador branco que chega de longe para roubar recursos e informações. A biopirataria aqui é o grande modelo de acusação – um problema de fato bastante grave, com casos concretos fartamente explorados pela mídia local, sobretudo quando envolve alguma terra indígena – mas acaba se refletindo na repulsa ao trabalho de antropólogos e da academia em geral. Essa postura defensiva contra as universidades e a ‘ciência’ é vista por alguns acadêmicos de forma idealizada e chega a ser celebrada como demonstração cabal da “agência nativa”, ou seja, a autonomia das comunidades, que reagem contra uma divisão desigual do trabalho intelectual e dos dividendos que ele gera. Ocorre que, para além dos exemplos mais estereotípicos, os próprios pesquisadores indígenas têm relatado dificuldades em ter seus projetos aceitos nas comunidades, dado o teor negativo que a palavra “pesquisa” passou a carregar na região como um todo. Além disso, essa postura antiacadêmica pode estar se refletindo nos baixos índices de vacinação na região (os estados do Acre, Roraima e Amapá têm os menores índices de vacinação do Brasil10, sendo a baixa adesão uma das principais responsáveis por isso11), chegando inclusive em comunidades indígenas avessas à vacina12. Tudo isso, é fácil perceber, é um prato cheio para o bolsonarismo e suas teses conspiracionistas delirantes, fortalecendo sua cruzada contra a ciência e aprofundando a desmoralização das universidades enquanto instituições de pensamento, ainda que cheias de problemas.
- Por fim, acredito que a chave para a compreensão desse fenômeno esteja também na articulação entre o modelo fundiário-econômico predatório, de destruição de florestas para grilagem de terras, que vem explodindo na região13, com seu correlato na forma predatória da política atual que culminou no governo Bolsonaro (mas que não é exclusividade deste). Lugares caóticos, onde reina a lógica do cada um por si e do salve-se quem puder (como os balneários de Santa Catarina e São Paulo em que Bolsonaro vai andar de jet-ski) parecem se dar muito bem com a figura de um fanfarrão irresponsável e barulhento, que inviabiliza qualquer tentativa de construção de comunidade ou de um modelo de ordem “de baixo para cima”. Ao contrário, produz-se a impressão que a única forma de resolver certos problemas é pela via autoritária, numa tradição política brasileira que Benjamin Moser bem definiu em seu pequeno livro Autoimperialismo e que talvez seja melhor representada hoje pela figura do Gal. Heleno, que foi Comandante Militar da Amazônia (uma grande obsessão sua) de 2007 a 2009 e atualmente ocupa o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Não à toa, Bolsonaro mira na deslegitimação dos principais líderes e representantes do movimento indígena – visando a atingir não essas pessoas em si, mas o próprio ‘sujeito coletivo’ que chamamos de movimento indígena, sabendo que este tem grande potencial aglutinativo e transformador. Bolsonaro explora as cisões entre diferentes organizações indígenas e seus representantes14, assim como as limitações dos nossos marcos legais sobre o assunto, na verdade bastante tímidos, para dizer o mínimo, quanto ao reconhecimento da autonomia dos povos indígenas. Lembremos que a Amazônia ocupou um lugar de destaque na consolidação do “protobolsonarismo” entre os militares, com a difusão de fake news que, muito anteriores às redes sociais, circulavam por e-mail ou no “boca-a-boca” alardeando a internacionalização e a perda de soberania nacional sobre a floresta, resultante de um conluio fictício entre ONGs, líderes indígenas e interesses estrangeiros. Tudo isso não passava, é claro, de pretexto para que o Exército, após o fim da ditadura, continuasse espionando a sua própria população15, dando continuidade ao conceito de ‘inimigo interno’ que ainda fundamenta suas práticas antidemocráticas, e que agora têm rosto e nome.
Isso tudo demonstra que, mais do que uma identificação imediata e inescapável da região Norte com o bolsonarismo, é este que tem nela a sua figura chave, que investe nela boa parte de sua produção simbólica, extraindo dela imagens e bordões que geram engajamento no resto do país, ainda que pouco se conheça daquelas realidades. Assim como outras questões sensíveis, como a sexualidade e os supostos “valores da família”, Bolsonaro sabe que a Amazônia exerce um incrível poder de atração sobre o imaginário dos brasileiros e sobre a identidade nacional, e por isso posiciona suas fichas ali. Talvez agora seja a hora de reconhecermos isso e reagir.
Notas
1 https://www.poder360.com.br/poderdata/poderdata-lula-vai-a-42-e-empata-com-a-soma-dos-adversarios/.
2 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/01/19/cientistas-e-moradores-suspeitam-de-contaminacao-no-rio-de-uma-area-conhecida-como-o-caribe-amazonico-em-alter-do-chao-pa.ghtml.
3 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58990245.
4 Trata-se de um documento importantíssimo, contendo inúmeras denúncias de violências contra os povos indígenas reunidas em sete mil páginas, apresentado pelo procurador Jader de Figueiredo Correa em 1967 e redescoberto pelo pesquisador Marcelo Zelic em 2012, no Museu do Índio, no Rio de Janeiro: http://armazemmemoria.com.br/documento-que-registra-exterminio-de-indios-e-resgatado-apos-decadas-desaparecido/.
5 Uma reportagem independente que cobriu a “Batalha de Humaitá” pode ser lida em https://apublica.org/2014/01/batalha-de-humaita-tenharim/.
6 https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2021/05/27/casa-de-lideranca-indigena-munduruku-e-incendiada-por-garimpeiros-em-jacareacanga-mpf-investiga-o-caso.ghtml.
7 https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/terra-yanomami-completa-um-mes-sob-ataques-de-garimpeiros-e-sem-protecao-do-estado.
8 https://piaui.folha.uol.com.br/arrabalde/.
9 https://iieb.org.br/wp-content/uploads/2021/08/Ascema.pdf.
10 https://arte.folha.uol.com.br/ciencia/2021/veja-como-esta-a-vacinacao/brasil/?origin=folha.
11 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/09/24/entenda-por-que-roraima-e-o-estado-com-menos-pessoas-totalmente-imunizadas.ghtml.
12 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56433811.
13 https://www.bloomberglinea.com.br/2021/10/17/amazonia-esta-a-beira-de-uma-inflexao-em-meio-a-grilagem-de-terras-no-brasil/.
14 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52929263.
15 Ver reportagem de Josias de Souza de 2001 (https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u23585.shtml) e artigo de Marcelo Leite de 2008 (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0806200811.htm), ambos na Folha de São Paulo, além do texto de Ruben Valente (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/teoria-conspiratoria-da-ditadura-guia-bolsonaro-na-amazonia.shtml) também na Folha.
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