Estudo revela que usina causará a perda do principal símbolo das cerimônias de casamento e um elemento central da organização social dos indígenas. A segurança alimentar e a saúde da comunidade também poderão ser afetadas.

Josie Jeronimo/OPAN

Um símbolo que marca o início de uma relação de amor, que é também um referencial ético e estético da organização social de um povo, marca o limiar de harmonia entre diferentes clãs, simboliza o trabalho coletivo, materializa a simbiose dos indígenas com o rio Arinos e que exprime a tradição aprendida e respeitada por décadas. Esse é o significado do colar Tutãra, dos Rikbaktsa, segundo o vasto relatório técnico elaborado pela antropóloga Adriana Athila, por encomenda da Operação Amazônia Nativa (OPAN).

Clique na imagem e confira o vídeo. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN.

O estudo, entregue ao Ministério Público Federal, tem o objetivo de dar visibilidade a um aspecto central e flagrantemente subdimensionado na avaliação dos impactos sociais e ambientais da UHE Castanheira, empreendimento considerado prioritário para o governo federal na bacia do rio Juruena. Nas 111 páginas de “Saber, fazer, existir: o povo Rikbaktsa, o Tutãra (colar de casamento) e o rio Tutãra itsik (“água de concha” ou rio Arinos), Athila desvenda uma complexa rede de relações sociais e a importância do curso d’água e das matérias primas que ele fornece para a manutenção de práticas culturais e da sociocosmologia dos indígenas. Impactos severos ao Arinos, resume a estudiosa, podem ferir fatalmente a existência dos Rikbaktsa enquanto povo.

Conchas são coletadas no Rio Arinos. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN

 

 

 

 

 

O povo Rikbaktsa conta atualmente com uma população de cerca de 1.800 pessoas que circulam ao longo de pelo menos 37 aldeias nas Terras Indígenas (TI) Erikpatsa, Japuíra e Escondido, no noroeste de Mato Grosso. Muitos escolheram viver às margens do rio Arinos, essencial para a vida Rikbaktsa.

 

É especificamente desse rio que tiram madeiras para fazer o pilão, brincos de orelha para os jovens, bolsas, panelas, o peixe para alimentação física e espiritual. Eles são o rio. Chegam a se autodenominar, nas festas das aldeias, de “gente-peixe”, segundo Athila. Seus rituais, suas danças e suas vocalizações imitam a vida que corre no leito do Arinos. Não é somente o curso d’água, é um ethos existencial. “A adequação e caráter desejável da existência de seres e coisas no mundo, sua ordem ou estado esperado, os Rikbaktsa designam por tsapyina, bonito, bom. Quando esta expectativa se contraria, fica estabelecida sua negação, batu isapy, na contração da fala Rikbaktsa, batsisapy, o feio, o ruim”, informa Athila.  Assim, o relatório técnico conclui que para que o povo Rikbaktsa possa existir em sua singularidade constitucionalmente resguardada, o rio Arinos, o tutãra itsik, e seu ambiente são fundamentais em sua integralidade.

Mulher Rikbaktsa elabora adorno com matéria-prima que vem do Rio Arinos. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN

O tutãra

Cobre-costas elaborado com conchas e penas, símbolo da cultura Rikbaktsa. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN

Em meio à importância do Arinos, o colar tutãra ascende como um verdadeiro tesouro dos Rikbaktsa. O artefato é uma composição feita de conchas do molusco tutãra (Paxyodon syrmatophorus), bivalve que só é coletado por eles no leito do rio Arinos, além de discos de tucumã ou coco e penas de diversas aves.

Fios de algodão unem as conchas. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN

A junção dos elementos colhidos na natureza por um fio de algodão dá origem a um belo cobre-costas que, segundo os indígenas, tem o poder de espantar “coisas ruins”. A maldade, registra a antropóloga, sucumbe à beleza dos peixes esculpidos manualmente a partir do tutãra. Surge aí a ética tsapyina. O que é “belo”, “adequado”, segundo o olhar coletivo dos Rikbaktsa captado por Athila, conta com a proteção do universo, que proporciona e favorece a continuação da existência.

Os indígenas cuidadosamente lixam as conchas, imprimindo com a força das mãos o formato de uma cauda de peixinho. O molusco tem, para a cultura Rikbaktsa, poderes. Eles usam as conchas para modelar suas panelas, mas não deixam as mulheres grávidas participarem do processo de produção, temendo o efeito da mística do tutãra nos bebês que ainda estão no ventre. As panelas das mulheres Rikbaktsa esculpidas com a concha que sai do Arinos constituem uma disputada herança. São passadas para as gerações após a morte das anciãs.

Conchas lixadas em formato de peixe. Imagens de Adriano Gambarini/OPAN

 

 

 

 

 

O relatório técnico antropológico demonstra, ainda, que os estudos da UHE Castanheira não contemplaram devidamente os impactos do empreendimento sobre peixes, regimes hidrológicos e qualidade da água. Além da agressão irreversível à sociocosmologia dos Rikbaktsa e à possível extinção de espécies do meio biótico, a segurança alimentar, nutricional e a saúde dos indígenas podem ser afetadas pela hidrelétrica. A UHE Castanheira, projetada para o rio Arinos é um dos mais de cem empreendimentos planejados para a bacia do rio Juruena, segundo levantamento da OPAN.

O detalhado estudo de Athila preenche lacunas sobre os impactos da UHE que foram convenientemente ignorados durante o processo de licenciamento e também propõe uma reflexão sobre o custo social e cultural a se pagar pelo empreendimento e sobre o que nos torna humanos ou apenas seres sencientes.

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Fonte: https://amazonianativa.org.br/hidreletrica-de-castanheira-ameaca-patrimonio-material-e-imaterial-dos-rikbaktsa/

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