Nós, representantes da sociedade civil de Mato Grosso, ficamos espantados ao descobrir, na edição de Domingo, 22 de Agosto de 2021, do jornal O Estado de São Paulo, em um encarte publicitário pouco identificado como tal, informações duvidosas sobre as consequências dos processos de demarcação de terras indígenas.

Em tempos de ameaça à democracia e de polarização política no Brasil, os veículos de imprensa exercem um papel fundamental. São eles que têm a missão de assegurar que os cidadãos sejam devidamente informados, pautando a vida política brasileira por meio de sólidos processos de checagem de informação e de investigação. São eles, em suma, que podem garantir a substância dos debates e nos salvar de falsas polêmicas e visões ideologizadas.

Nós, representantes da sociedade civil de Mato Grosso, ficamos espantados ao descobrir, na edição de Domingo, 22 de Agosto de 2021, do jornal O Estado de São Paulo, em um encarte publicitário pouco identificado como tal, informações duvidosas sobre as consequências dos processos de demarcação de terras indígenas.

O episódio, indigno de um jornal de grande porte como o Estadão, coloca-se no contexto do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário 1.017.365, considerado de repercussão geral, que defende a tese do “marco temporal”, marcado para hoje (25/08). Essa tese alude que os povos indígenas só teriam direito às suas terras de ocupação ancestral caso estivessem nela no dia da promulgação da Constituição, ou seja, em 5 de outubro de 1988, mesmo que tenham sido forçados a sair — situação dominante no processo de colonização. Se esse entendimento prevalecer, todas as terras indígenas que se enquadrarem nesse critério poderão ter o status revertido, abrindo alas para a violação de direitos fundamentais dos povos indígenas, além de mais violência e devastação.

Ao publicar tal conteúdo pago disfarçado de notícia, O Estado de São Paulo opta em apoiar um processo organizado de convencimento da população brasileira a partir de dados fantasiosos, estudos não publicados e informações inverificáveis.

Para garantir o respeito dos fatos e da verdade, disponibilizamos aqui uma checagem de 4 informações colocadas no encarte publicitário de forma enganosa:

Ao afirmar que 4,42 milhões de hectares devem se tornar terras indígenas em Mato Grosso com o julgamento do STF marcado para hoje (25/8), o encarte publicitário usa dados infundados.

Hoje, de acordo com dados da Funai, Mato Grosso conta com pelo menos 31 processos de reivindicação de reconhecimento de terras indígenas e 16 com o status formal “em estudo”, sem qualquer informação sobre seu perímetro. Ou seja, os números voluptuosos propagandeados pelo jornal são mera especulação.

O texto omite que o processo de demarcação de Terras Indígenas se baseia em critérios claros definidos no texto Decreto 1775/96, que regulamentou o procedimento administrativo de demarcação calcado em princípios de legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Com isso, o exemplo dado na entrevista do Deputado Aldo Rebelo não se sustenta: descendentes de povos indígenas na cidade de São Paulo não poderiam passar a reivindicar do dia para a noite direitos em plena cidade de São Paulo.

É importante relembrar que a garantia aos povos indígenas ao uso e ocupação de seus territórios é o reconhecimento de um direito anterior ao surgimento da própria Constituição e que o Estado peca reiteradamente em adiar a conclusão dos processos administrativos que estabelecem justamente os limites dessas áreas, agravando conflitos que se arrastam por décadas, e devendo, inclusive, ser responsabilizados por tanta morosidade.

(2) Ao afirmar que 30% da população de Mato Grosso será afetada pelas demarcações de Terras Indígenas, o encarte publicitário estabelece uma interpretação fantasiosa dos conflitos fundiários e da produção de commodities de exportação.

Ele dá a entender que soja, milho, algodão e carne são produtos de consumo exclusivo e direto dos mato-grossenses ou que os lucros dessas culturas voltam exclusivamente à população mato-grossense. Esta afirmação também omite os interesses privados por trás dos conflitos fundiários em Terras Indígenas. Esses conflitos não envolvem todos os moradores dos municípios, mas sim os poucos que reivindicam propriedade em Terras Indígenas.

A contabilização dessas reivindicações pode se observar no Cadastro Ambiental Rural, base de dados oficiais do Governo brasileiro que apresenta hoje um número de 1.000 cadastros sobrepostos a TIs[1], , o que significaria 0,02% da população mato grossense se ainda fosse demonstrado que os indivíduos em questão são mato-grossenses e representam menos de 1% dos imóveis rurais do estado.

(3)  Ao afirmar que o crescimento do PIB per capita é devido à segurança jurídica da limitação de demarcação em Mato Grosso, assume-se uma relação de causa e efeito absolutamente fora da realidade.

Frente à legislação vigente, o próprio entendimento de ‘limitação da expansão’ das Terras Indígenas aparenta mais um processo ilegal que nada tem a ver com segurança jurídica. Além disso, ao defender que as Terras Indígenas deveriam ter ‘limitações’ para o suposto crescimento do PIB, o texto contraria uma das alegações da ala mais progressista do agronegócio, que defende que é possível fazer crescer a produção sem derrubar uma árvore a mais.

(4) A afirmação de que « demarcações de novas áreas atendem a interesses de ONGs e associados » é feita sem qualquer evidência, desconsidera a lisura do procedimento demarcatório do próprio Estado e desqualifica de forma gratuita o trabalho de diversas organizações da sociedade civil que demonstram com independência e transparência impactos sociais e ambientais.

Diferentemente das organizações da sociedade civil, que atuam com base em projetos sociais e ambientais com controles técnicos e financeiros rígidos, vale ressaltar que o estudo do IMEA, citado no jornal, bem como sua metodologia de análise e as inverdades publicadas, não estão disponíveis ao público.

Além de garantir o direito de resposta e promover verdadeira investigação sobre os fatos narrados, nos parece fundamental que o Jornal o Estado de São Paulo garanta ao Blue Studio um processo de checagem mínimo das informações, bem como adote, como todos os grandes jornais desse porte, de um ombudsman para tratamento formal de casos como esses.

*Sobre o Observa-MT:

O Observatório Socioambiental de Mato Grosso é formado por uma rede de instituições e tem como objetivo elaborar, publicar e difundir dados sobre a situação socioambiental de Mato Grosso. Com isso, almejamos democratizar o acesso a informações de qualidade e fiscalizar as políticas públicas do estado na área ambiental. Estão em nosso campo de atuação assuntos como desmatamento, uso de agrotóxicos e invasões a Terras Indígenas. Por meio do trabalho colaborativo, buscamos garantir um futuro em que a sustentabilidade e o respeito aos povos tradicionais estejam na ordem do dia.


[1] Informação disponível em: https://www.car.gov.br/publico/imoveis/index. Acesso em 23/08/2021.

 

 

Fonte: https://amazonianativa.org.br/2021/08/25/nota-de-repudio-do-observa-mt/

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