Etnias que zeraram infecções representam um universo de 12 mil pessoas. Em outras 23 comunidades, o número de casos de coronavírus diagnosticados foi reduzido em até 68%.
A demora do governo federal na aquisição de vacinas contra a covid-19 e a aposta em métodos não comprovados cientificamente podem ter comprometido o enfrentamento à doença. Diariamente, milhares de brasileiros ainda perdem suas vidas em decorrência da pandemia. A tragédia anunciada, contudo, poderia ter sido evitada, como a experiência junto à população indígena demonstra.
Quatro meses após o início da vacinação dos povos originários – no grupo prioritário devido à grande vulnerabilidade a doenças –, a covid-19 está controlada em dezenas de etnias, como atestam números da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão que diariamente fornece boletins sobre o andamento da imunização.
Em Mato Grosso, ao menos 21 etnias, que somam 12.557 indígenas, eliminaram casos de covid-19 de seus territórios. Essa amostra corresponde à população atendida pelos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) Cuiabá e Kaiapó de Mato Grosso, que até o final de janeiro acumulavam 65 pessoas infectadas e cinco óbitos. Na segunda-feira (17), data da última atualização do boletim da Sesai, o número de casos nesses dois DSEIs encontrava-se zerado e sem novos registros de mortes em decorrência de covid-19.
No DSEI Cuiabá, 77% da população habilitada a ser vacinada, que é de 4.952 pessoas, receberam a segunda dose; já no DSEI Kaiapó de Mato Grosso, esse percentual é de 36%, num universo de 2.322 pessoas.
Entre outros povos indígenas situados no território mato-grossense, é possível constatar que a incidência da covid-19, desde o início da vacinação até o momento, reduziu drasticamente. Se no final de janeiro o DSEI Xingu, que engloba uma população de 8.126 pessoas de 16 povos, somava 304 infectados, atualmente registra 97 – uma diminuição de aproximadamente 68%. No mesmo intervalo, pelo DSEI Araguaia, que contempla 5.867 pessoas de sete etnias, o número de casos caiu de 21 para 7 (por volta de 67%).
A vulnerabilidade dos povos nativos deve-se a fatores epidemiológicos e geográficos. A vacina, aplicada por equipes de saúde indígena, é a CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. A aplicação das primeiras doses do imunizante no Brasil só foi possível após um acordo ser firmado entre o governo de São Paulo e o laboratório chinês – que forneceu os insumos necessários à produção da vacina pelo Instituto Butantan.
Essa etapa de imunização aos povos originários adultos é parte do Plano Geral de Enfrentamento à covid-19 para Povos Indígenas, do governo federal. O Plano exclui aqueles que residem na zona urbana ou rural e povos isolados, devido à falta de um estudo de impacto orçamentário – o que motivou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) a ingressar com uma ação (ADPF 709) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), cobrando providências.
O ministro Luís Roberto Barroso, em decisão judicial publicada no dia 16 de março, enfatizou que o referido estudo orçamentário “já deveria estar pronto” e observou que “falta coerência e transparência à União”. Barroso intimou a Funai e os Ministérios da Saúde, Justiça, Cidadania e Defesa, além da Diretoria Geral da Polícia Federal, a apresentar um detalhamento sobre o quantitativo de indígenas não contemplados no plano, e que recursos fossem empenhados para o atendimento da população.
CPI da covid-19
Para investigar a conduta do governo federal durante a pandemia, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado. Os depoimentos, até o momento, reforçam as evidências de que o presidente da República Jair Bolsonaro agiu com negligência em relação à covid-19.
Na última quinta-feira (13), o gerente-geral da farmacêutica Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, afirmou na CPI que a empresa fez ao Brasil no ano passado ao menos cinco ofertas de doses de vacinas contra o coronavírus, e que o governo federal ignorou proposta para comprar 70 milhões de unidades do imunizante.
Segundo Murillo, caso o contrato com a Pfizer tivesse sido assinado pelo governo em agosto do ano passado, o país teria 18,5 milhões de doses da vacina disponíveis até o segundo trimestre (abril, maio e junho) deste ano. Desse total, 4,5 milhões seriam entregues entre dezembro e março, começando com 1,5 milhão no último mês de 2020.
O depoimento de Murillo corrobora as informações apresentadas à comissão um dia antes pelo ex-secretário de Comunicação do governo, Fabio Wajngarten. Segundo ele, o governo paralisou as negociações com a farmacêutica por dois meses.
Na terça-feira (11), o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, confirmou aos membros da comissão que o Palácio do Planalto sediou uma reunião para discutir uma mudança na bula da cloroquina, no intuito de incluir a recomendação de seu uso a pacientes com covid-19. O medicamento, utilizado no tratamento da malária, não possui eficácia comprovada cientificamente contra a covid-19. Seu uso fora da prescrição original, inclusive, pode piorar a condição de saúde dos pacientes. Entretanto, Bolsonaro e seguidores mais fervorosos, em inúmeras oportunidades, estimularam publicamente o uso da cloroquina como tratamento ao coronavírus.
Na avaliação do presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do DSEI Xavante, Clarencio Tesuwate, não há dúvidas de que o governo federal, na figura do presidente Bolsonaro, não só agiu com “displicência” em relação à covid-19, como também boicotou a vacina.
Somente após as primeiras mortes é que o povo Xavante passou a adotar mais cuidados, como restrições à ida às cidades, barreiras sanitárias, uso de máscaras e álcool em gel. A situação, ressalta Clarencio, foi agravada pela postura negacionista assimilada por boa parte da população, influenciada pela circulação de notícias falsas sobre a eficácia da vacina e por posicionamentos do presidente Bolsonaro – que chegou a debochar da pandemia em rede nacional, classificando-a de “gripezinha” e “resfriadinho”.
“Muita gente do nosso povo dizia que não ia ser cobaia e repudiava a vacina, pois o presidente dizia que a vacinação não era obrigatória e que não se responsabilizaria pelos efeitos colaterais. Foi muito difícil”, disse.
Para lidar com a situação, muito diálogo. A participação de indigenistas, equipes de saúde do DSEI Xavante, lideranças indígenas e da sociedade civil, além de instituições como o Ministério Público Federal, têm sido importantes apoios no processo, destaca o líder Xavante. “Aos poucos, sairemos todos dessa, ainda mais fortes”, diz.
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