Apesar do histórico de massacres, exploração de recursos naturais e mão de obra escravizada, a região já vivenciou momentos de maior estabilidade quando o Estado se fez presente.
Por Túlio Paniago / OPAN
“A relação de traficantes e ribeirinhos é a reprodução do antigo sistema de barracão. É a atualização do sistema seringalista”, analisa o indigenista Fabrício Amorim, assessor da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), membro do Observatório dos Direitos Humanos do Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) e que acumula longa atuação no Vale do Javari. Segundo ele, a atual conjuntura de invasões à Terra Indígena apresenta certas particularidades, em especial a inter-relação entre crimes ambientais e o narcotráfico, mas destaca uma espécie de padrão histórico em seu modus operandi, mais especificamente na lógica trabalhista herdada do “Ciclo da Borracha”.
Fabrício Amorim se refere ao sistema de barracão ou de cantina, que se caracterizou como método exploratório da força de trabalho desde que foi implantado, a partir de 1870. O objetivo era manter o empregado permanentemente endividado. Os seringueiros eram pagos com bens (roupas, calçados, alimentos, ferramentas…), cadernetas ou créditos diretos que só poderiam ser usados/trocados/comercializados no “barracão” ou “cantina” do seringalista, o proprietário do seringal. Criava-se um sistema de endividamento do qual os trabalhadores dificilmente conseguiam escapar. Os seringueiros, neste contexto, não tinham outra alternativa senão continuar no seringal, tornando-se escravizados por dívidas.
A versão contemporânea deste sistema continua garantindo o enriquecimento dos chamados patrões (narcotraficantes). A diferença é que a atual mão de obra, composta por alguns ribeirinhos e moradores das cidades próximas, assume uma dívida que não é necessariamente financeira ou material. Estas pessoas, que ganham a vida a partir de uma série de crimes ambientais em território indígena (caça, pesca, garimpo e exploração de madeira), se associam aos narcotraficantes visando obter alguns recursos, mas, sobretudo, segurança para cometer as infrações.
“É como o sistema de seringal: tem o patrão seringalista que é poderoso, e quem trabalha para ele tem respaldo. O traficante abre uma empresa de pesca e dá motor, material, gasolina, e então o ribeirinho pesca para pagar tudo isso e ainda tira uma graninha”, detalha Amorim. Ele acrescenta que, eventualmente, essa relação pode ter outros desdobramentos. “O traficante pode contratar o ribeirinho para ser pistoleiro? Pode. Pode contratá-lo como mula para andar com droga pra lá e pra cá? Pode, são possibilidades. Mas não são todos os ribeirinhos, é uma meia dúzia”.
Crimes cujas rotas se convergem
Esta associação entre as atividades não é necessariamente para usar peixes ou madeiras como invólucros para o transporte da droga, embora isso também aconteça, mas principalmente para a lavagem do dinheiro do tráfico. Muitos destes produtos ilegais (carnes, pescados, madeiras e minerais) são comercializados em mercados regularizados, ou seja, ganham aspecto de legalidade. Peru e Colômbia, por exemplo, consomem toneladas de carnes extraídas do Vale do Javari, tanto de caça quanto de pesca. “O turismo internacional é forte, principalmente na região de Letícia, na Colômbia, onde se encontra o famoso ceviche peruano [à base de pirarucu]”, conta Beto Marubo, uma das lideranças da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). A madeira encontra destino semelhante. “Depois de saqueada, eles ‘requentam’ no Peru. Tiram documentação rapidinho e a madeira passa a ser considerada um produto legal retirado em território peruano”, complementa.
A margem de lucro, por sinal, também é bem mais atrativa. O pescador costuma receber, no Brasil, aproximadamente R$ 5 pelo quilo do pirarucu, enquanto se paga até R$ 15 pela mesma quantia nos vizinhos da tríplice fronteira. Além dos exemplares adultos, que costumam ter entre 100 e 120 quilos, os alevinos da espécie também são bastante visados, porém com finalidade ornamental, assim como o aruanã. A piracatinga, cuja comercialização é proibida no Brasil porque os pescadores matam botos e jacarés para usar como isca, também encontra vasta clientela na Colômbia.
Várias espécies de quelônios (ordem de répteis que engloba todas as tartarugas), em particular o tracajá, são igualmente disputados. E ainda são contrabandeadas carnes de anta, queixada, paca, caititu, veado e macaco preto. “A cada entrada [na TI], levam entre meia e uma tonelada. E cada tonelada rende entre R$ 70 e R$ 100 mil. Há toda uma logística de apoio e fomento para abastecer os mercados da região”, explica Beto Marubo.
A articulação entre crimes ambientais e narcotráfico existe há pelo menos uma década, mas tem se fortalecido cada vez mais nos últimos anos. “Na época do alevino, quando se fazia fiscalização no rio Javari, tinha que ir com a polícia, porque ali os caras andavam de metralhadora e fuzil. E hoje isso se expandiu”, constata Fabrício Amorim. Para exemplificar, ele menciona o que aconteceu com uma base do exército peruano, situada no encontro entre os rios Taquaí e Javari. “Foi destruída. É uma demonstração da força do narcotráfico. A Amazônia peruana está totalmente abandonada. E estava tão fácil invadir a Terra Indígena, que começaram a abrir negócios ali”, conclui.
E a ligação entre invasores de diferentes ramos de exploração, segundo a Polícia Federal, também passa pelas rotas de escoamento das mercadorias ilegais, uma vez que os rios Solimões e Javari são os principais itinerários fluviais dos produtos contrabandeados (madeira, peixe, drogas e outros…). Esta associação entre criminosos ambientais e narcotraficantes, além de propiciar a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, potencializa a influência regional da organização e o poderio bélico de seus integrantes.
A resistência indígena
Esta conjuntura exige maior fiscalização para garantir a proteção do território. Neste sentido, a situação só não é pior graças à coordenação entre os povos indígenas, que, diante de um histórico de ameaças e violações, se organizaram coletivamente para participar dos processos políticos que lhes dizem respeito e assegurar a defesa da terra. Este senso de unidade, que pôs fim a conflitos interétnicos históricos, foi fundamental na luta pela demarcação territorial.
A aliança entre diferentes povos começou a ser costurada em meados da década de 1980, no contexto da Campanha Javari (Campanha pela Sobrevivência dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Dada a repercussão nacional e internacional, a Campanha teve papel de destaque na luta pela demarcação, contribuindo também com a constituição de uma certa identidade étnica regional, superando desavenças que se arrastavam por gerações, em especial entre Marubo e Matsés.
O fortalecimento desta identidade se desenvolveu como alternativa à falta de assistência da Funai, culminando, em 1991, na criação do Conselho Indígena do Vale do Javari (Civaja), que passou a atuar como mediador entre diferentes etnias junto ao Estado, montando uma agenda coletiva de reivindicações, que incluía pautas relacionadas à saúde e educação, mas principalmente à regularização da terra. A Civaja foi a precursora da Univaja, entidade representativa mais forte e atuante na atualidade. “Essa unidade político-territorial foi forjada a partir dessa necessidade [demarcação]”, destaca Fabrício Amorim.
O coordenador da Campanha Javari foi o sociólogo e indigenista Sílvio Cavuscens, que atuava pela OPAN. A iniciativa também contou com o apoio de outras organizações, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Pastoral Indigenista da Diocese do Alto Solimões e a entidade suíça Terre des Hommes. Neste contexto, entre 1983 e 1985, a Petrobras fazia pesquisas sismográficas em busca de gás natural, inclusive foi instalada uma enorme sonda de prospecção (torre de perfuração) a 5 km de uma maloca de isolados. Além de várias explosões de dinamite, foram abertas centenas de picadas e clareiras na terra indígena.
A Campanha Javari e o levantamento acerca dos povos isolados foi fundamental para a retirada da Petrobrás, bem como para a demarcação do que viria a ser o segundo maior território indígena do país. “Era preciso que os indígenas assumissem o controle sobre suas terras e a Campanha foi muito importante para garantir estes 8,5 milhões de hectares, afinal era necessário proteger os isolados e estabelecer linhas de proteção. Aliás, a atual organização e o protagonismo indígena no processo de defesa do território é um grande legado desse trabalho”, avalia Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN.
Entre o mito e a realidade
Os povos indígenas fazem o possível para garantir a proteção da terra. Porém, sem o respaldo do Estado e diante de frentes exploratórias cada vez mais articuladas, as invasões são inevitáveis. Na ocasião dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, foi exposto ao mundo o contexto de insegurança no Vale do Javari. Ainda assim, mais de dois meses após o trágico desfecho, cuja investigação ainda não apontou os possíveis mandantes, a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas e dos defensores de seus direitos permanece inalterada. Beto Marubo relata que as forças de segurança foram retiradas assim que os corpos foram encontrados, trazendo à tona novamente o clima de apreensão. “Está tudo como era antes. Estão nos intimidando dentro do nosso próprio território”.
Na tentativa de eximir o Governo de qualquer responsabilidade, criou-se a narrativa oficial de uma área invariavelmente violenta, dada a condição fronteiriça (Brasil-Peru-Colômbia), a grande extensão territorial e o difícil acesso, o que impossibilitaria a presença efetiva do Estado. “Completamente selvagem”, foi assim que o presidente Jair Bolsonaro descreveu a região do Vale do Javari em sua primeira manifestação, no dia 7 de junho, após o desaparecimento de Bruno e Dom. E ressaltou, dois dias depois, que lá “geralmente você anda escoltado”. O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, entre as duas declarações do chefe do executivo, reforçou se tratar de uma “área bastante inóspita”.
Esta abordagem quase fabular é confrontada a partir da perspectiva histórica. De acordo com lideranças indígenas e com especialistas que atuaram durante muito tempo na região, esta narrativa seria apenas um pretexto para tentar justificar a omissão. “Estas mesmas dificuldades não impedem a chegada dos invasores. É o Estado que não está aparelhado para atuar de forma adequada no local”, observa Elias Bigio, ex-coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato na Funai e atual diretor-presidente da Operação Amazônia Nativa (OPAN).
Um hiato no histórico de violações
Há relatos de um cenário bem mais estável em um passado não tão distante, mais precisamente no contexto de demarcação e nos anos subsequentes, entre o final do século XX e início do atual. “Nunca foi uma paz absoluta, mas a Funai e o Poder Público protegeram essa região por décadas. O Governo conteve e apaziguou a situação, deu segurança às populações isoladas, aos recém-contatados e demais povos indígenas. Então como é que não conseguem hoje?”, questiona Beto Marubo. “Os níveis atuais de invasão só são comparáveis a períodos pré-demarcação, quando a terra era devoluta. Esse vácuo foi deixado de forma proposital, ironicamente num momento em que a retórica do Governo Federal é justamente de proteção e soberania da Amazônia”, complementa.
A identificação territorial foi concluída em 1998, mas a TI do Vale do Javari só foi homologada em 2001. Atualmente, vivem na terra mais de 6 mil indígenas, sendo cinco povos de “contato sustentado” (Marubo, Matis, Kulina Pano, Matses, Kanamari), dois de recente contato (Korubo e Tsohom Djapa), além de 16 registros da presença de grupos em situação de isolamento (10 já confirmados). É a maior concentração de isolados do mundo.
Características tão particulares exigem uma atenção especial no que diz respeito à fiscalização e proteção territorial. Neste sentido, o Vale do Javari conta com quatro bases da Funai. A primeira delas foi criada no contexto de demarcação, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí. “Nessa época foram retirados madeireiros, pescadores e demais invasores. Só entrava ou saía com autorização da Funai, que passou a ter controle total na região, como nunca houve na história”, descreve Fabrício Amorim.
A jornalista e escritora Verenilde Santos Pereira, que acompanhou de perto o processo de demarcação, considera que o Estado não esteve presente de forma responsável e contínua para cumprir sua missão de proteção aos indígenas. Como consequência, esta lacuna foi preenchida por invasores de toda ordem, e assim a violência atual tem se revelado em diferentes camadas. “O que se sobressai, obviamente, é a mais explícita, como a que vitimou Bruno e Dom. Mas vale ressaltar que a falta de assistência a esses povos também é uma forma de violência”, reflete a autora do cultuado romance “Um rio sem fim”.
Dos primeiros registros ao Ciclo da Borracha
Para uma melhor compreensão acerca desta complexa conjuntura contemporânea, faz-se necessário revisitar o passado. Desde os primeiros contatos com não indígenas, os povos originários da região vêm sendo vitimados por massacres ou doenças trazidas pelos invasores. O etnólogo Curt Nimuendajú, em seu mapa etno-histórico do Brasil, indica que o primeiro registro de indígenas Mayoruna (Matsés) na foz do rio Javari teria ocorrido em 1691.
De acordo com as publicações “Panoramas Amazônicos” (1943) e “Caminhos do Acre” (1947), de Anisio Jobim e José Moreira Brandão Castelo Branco, respectivamente, os primeiros confrontos teriam acontecido no início da segunda metade do século XIX, em decorrência das expedições das comissões de limites peruano-brasileiras. Mas os embates mais violentos teriam se dado a partir do final do século, após a invasão de seringueiros e caucheiros (exploradores de resina semelhante ao látex da seringueira). A verdade é que a história da região é muito nebulosa. “Quase não existe documentação antes da chegada da Funai [1974]. E o SPI (Serviço de Proteção aos Índios – 1910-1967) praticamente não atuou ali. O primeiro estudo para demarcação só ocorreu na década de 1980”, explica Fabrício Amorim.
Segundo o “Relatório sobre os índios Marubo” (1975), de Delvair Montagner Melatti e Julio Cezar Melatti, a ocupação por não indígenas da parte brasileira da bacia do Javari teve início em meados do século XIX. “Em 1899 o Javari já estava bem povoado até a confluência com o Itacoaí”, indica o documento. A ocupação não era composta exclusivamente por brasileiros, mas também por peruanos, todos empenhados na extração de látex para produção de borracha. É neste contexto que se inicia o Ciclo da Borracha e é implantado o sistema de barracões.
Da borracha à madeira
Quando o preço da borracha entrou em decadência, a partir da primeira década do século XX, houve uma grande evasão de imigrantes do Vale do Javari. Mas o fim do período da borracha anunciava o início do período da madeira. O látex continuou sendo extraído, cada vez em menor quantidade, enquanto a extração de madeira, sobretudo cedro e mogno, aumentava substancialmente. Foram décadas de intensa exploração, principalmente a partir dos anos 40 até final da década de 90.
No que diz respeito às relações de trabalho, as empresas madeireiras mantiveram a lógica dos seringais. “Cada madeireiro recebe mercadorias de que necessita, ficando em débito com a empresa, à qual paga com madeira. A empresa dispõe de embarcações que abastecem diretamente os madeireiros da área arrendada por ela”, detalha o relatório de Delvair e Julio Cezar.
A invasão madeireira coincide com o aumento dos casos de violência contra os povos indígenas da região, de modo que o final do século XX ficou marcado por episódios sangrentos. “Nas décadas de 70 e 80 ocorreram vários massacres. Foram 12 registrados pela Funai. Em apenas um caso foi aberto processo judicial contra os assassinos, que é o massacre de 1989, porque os corpos foram encontrados. O restante, não. Não tem corpo, não tem crime. Estes 12 massacres foram registrados, mas possivelmente aconteceram muitos outros. É algo ainda a ser melhor estudado”, observa Fabrício Amorim.
É verificável, por meio das narrativas indígenas, que houve intensa depopulação decorrente de contatos indiscriminados a partir da década de 1970. Além dos embates propriamente ditos, muitos indígenas foram vitimados por doenças trazidas pelos invasores. Hepatite, tuberculose e malária causaram muitos óbitos. O caso mais marcante ocorreu em 1982, quando um surto de gripe quase dizimou os Matis.
Atualmente, levando em consideração o aumento exponencial das invasões e a grande quantidade de isolados na região, o risco de novas epidemias aumenta. “Os isolados não estão imunizados. Eles não têm resistência a muitas doenças, ou seja, uma gripe ou sarampo pode exterminá-los”, alerta Elias Bigio. Além disso, estes grupos também são mais suscetíveis a entrar em confronto, uma vez que não mantêm contatos regulares com não indígenas.
Ao repassar o histórico dos povos indígenas do Vale do Javari, desde os primeiros contatos aos dias atuais, é inevitável a citação do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Há muitas maneiras de matar. Cravando um punhal, tirando o pão, não curando a enfermidade, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra, etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”.
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