Órgão também atuou pela demarcação de terras e contra o garimpo ilegal em áreas indígenas
A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) trabalhou em 2020 para prevenir e mitigar os efeitos da pandemia de covid-19 sobre povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, consideradas mais vulneráveis à contaminação do novo coronavírus. Por meio de recomendações, notas técnicas, pedidos de informação e ofícios, a 6CCR buscou conscientizar e mobilizar os órgãos responsáveis para a adoção de medidas tempestivas e eficazes à proteção desses grupos. Além disso, o órgão atuou em defesa do direito originário dos indígenas às suas terras, pelo avanço das demarcações e contra as queimadas e o garimpo ilegal em territórios tradicionais.
Covid-19 – Declarada a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pelo Ministério da Saúde, a 6CCR recomendou à Fundação Nacional do Índio (Funai) que se abstivesse de realizar qualquer ação ou atividade, laica ou religiosa, nas imediações dos povos isolados. Cobrou, ainda, a elaboração imediata de Plano de Contingência para Surtos e Epidemias e ativação de Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões em relação a esses povos.
O órgão superior também recomendou a revogação do artigo 4º da Portaria 419/20 da Funai, para garantir que somente a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato pudesse autorizar, de forma excepcional, atividades consideradas essenciais à sobrevivência desses povos e que implicassem algum tipo de contato com eles. A recomendação do MPF foi prontamente acatada pela Funai em relação a esse ponto.
Ainda em março, reforçando demandas apresentadas anteriormente à Funai e à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a 6CCR solicitou aos ministros da Justiça e da Saúde informações sobre a implantação do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus em comunidades indígenas.
Em abril, atendendo a pedido do MPF, a Sesai incluiu representantes de organizações indígenas na composição do Comitê de Crise para o planejamento, coordenação, execução, supervisão e monitoramento dos impactos da covid-19 no âmbito da saúde dos povos indígenas. No mesmo mês, a 6CCR recomendou ao governo federal que providenciasse logística diferenciada para o pagamento de benefícios sociais aos indígenas, como o auxílio emergencial e o Bolsa Família, e cobrou da Funai e do Ministério dos Direitos Humanos esclarecimentos sobre a redução na execução dos recursos orçamentários destinados ao combate à covid-19 entre as comunidades tradicionais.
Em maio, a Câmara do MPF recomendou aos Ministérios da Cidadania, dos Direitos Humanos e da Agricultura a adoção de medidas para garantir a assistência e promoção de serviços essenciais aos povos tradicionais durante a pandemia. Com o objetivo de orientar essas populações sobre como se proteger da covid-19, lançou um guia prático sobre o coronavírus destinado a elas. A publicação digital reúne informações do Ministério da Saúde sobre a doença, contágio e prevenção, com atenção ao contexto e modo de vida dos povos indígenas e tradicionais.
No início de junho, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF divulgou nota pública com críticas à atuação do governo federal para assegurar a saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia. O documento questionou a falta de transparência do Estado ao não disponibilizar dados precisos sobre números de casos confirmados e mortes, bem como os entraves burocráticos impostos a iniciativas organizadas pela sociedade e organizações não-governamentais.
Em julho, a 6CCR voltou a cobrar da Sesai a adequação dos planos de contingência contra o coronavírus. O órgão superior afirmou ser obrigação do Estado fornecer atendimento especializado não apenas aos indígenas aldeados, mas também àqueles que vivem nos centros urbanos ou habitam áreas não regularizadas.
No mesmo mês, em atenção à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 709, a 6CCR passou a acompanhar as reuniões da Sala de Situação Nacional (SSN), que monitora o Plano de Enfrentamento da Covid-19 para Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. Ainda no âmbito da ação judicial, atua no debate sobre o Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas.
Com o objetivo de garantir a continuidade dos serviços de alimentação e transporte aos pacientes atendidos pelos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Dseis), a 6CCR assinou, no mês de outubro, aditivo ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 2019 com o Ministério da Saúde, a Sesai, a Defensoria Pública da União e o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi). Com isso, os Dseis foram autorizados a fazer contratações emergenciais e prorrogações dos contratos vigentes até a conclusão das licitações centralizadas conduzidas pelo Ministério da Saúde, prevista para março de 2021.
Já no fim do ano, em dezembro, a 6CCR se reuniu com representantes da Funai, da Sesai, da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), vinculado ao Ministério da Defesa, em busca de soluções para a regularização do transporte aéreo destinado a levar agentes de saúde, medicamentos e insumos hospitalares a comunidades indígenas da região amazônica.
Terras indígenas – A 6CCR atuou de modo firme e crítico ao defender o direito originário dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por eles. No mês de abril, logo após a publicação da Instrução Normativa 9/2020 pela Funai, que estabeleceu critérios para a emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL) em relação a imóveis privados, a Câmara do MPF questionou a legalidade e constitucionalidade da norma.
A DRL é uma espécie de atestado de regularidade fornecido pela Funai aos proprietários de imóveis rurais, assegurando que os limites do imóvel privado não se sobrepõem a territórios indígenas. De acordo com a IN 9/2020, no entanto, a certificação da Funai deve considerar apenas terras indígenas homologadas por decreto presidencial, ignorando áreas reivindicadas por grupos indígenas ou em processo de regularização. O MPF propôs ações judiciais em diversas unidades da federação pedindo a suspensão liminar da norma e sua posterior anulação, no julgamento de mérito. Em várias localidades houve decisões favoráveis ao pedido ministerial.
Em maio, levantamento realizado pela 6CCR entre os casos investigados pelo MPF apontou que os conflitos relacionados a disputas pela posse, ocupação e exploração da terra são a principal causa da violência praticada contra populações indígenas e comunidades tradicionais no Brasil na última década.
No mesmo mês, o órgão superior recomendou à Funai que devolvesse ao Ministério da Justiça os procedimentos de regularização de 27 terras indígenas, para dar seguimento imediato aos processos de demarcação. Os expedientes haviam sido enviados pela pasta à autarquia indigenista para revisão à luz da tese do marco temporal, o que afronta decisão do STF.
A 6CCR divulgou, ainda, nota técnica em que reafirma a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, em análise pela Suprema Corte no âmbito do Recurso Extraordinário 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.031). Defendida pela Advocacia-Geral da União (AGU), a tese condiciona a demarcação de territórios indígenas à ocupação do local na época da promulgação da Constituição de 1988, ou à comprovação de que a população foi removida da área à força, sob resistência persistente – o chamado “esbulho renitente”. O MPF sustenta que tais restrições afrontam expressamente a Constituição Federal, que assegura o direito originário das populações indígenas às terras que tradicionalmente ocupam.
Em junho, análise feita pela 6CCR indicou que quase dez mil propriedades inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais – estão sobrepostas a terras indígenas em diferentes fases de regularização ou a áreas com restrição de uso. O estudo foi encaminhado a procuradores da República em todo o país a fim de subsidiar a atuação no combate à grilagem e aos crimes ambientais em terras indígenas, bem como às violações dos direitos humanos desses povos.
No mês de setembro, a 6CCR recomendou ao presidente da Funai a revogação de orientação interna que impede a atuação jurídica do órgão na defesa de indígenas considerados “integrados”. O órgão superior afirmou que a medida contraria a Constituição Federal e a própria finalidade da Funai de proteger e promover os direitos dos povos indígenas.
Em dezembro, a Câmara do MPF lançou a publicação digital “Memória da Terra – Arqueologias da ancestralidade e da despossessão do povo Xavante de Marãiwatsédé”, de autoria do antropólogo Paulo Tavares. A obra é um desdobramento de estudo técnico realizado para instruir inquérito civil em que o MPF apurou a violação de direitos do povo Xavante, em razão da remoção forçada do grupo ocupante do território de Marãiwatsédé, durante a ditadura militar.
Garimpo ilegal – A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF também lutou contra o garimpo ilegal e a tentativa de regularização da mineração em terras indígenas. Em fevereiro, o órgão divulgou nota pública contrária ao Projeto de Lei 191/2020 – que autoriza a exploração da atividade minerária em terras indígenas – , e criticou a proposta durante audiência pública na Câmara dos Deputados. Segundo a 6CCR, a aprovação do PL, apresentado ao Congresso pelo presidente da República, pode causar a “destruição de importantes áreas hoje ambientalmente protegidas, assim como a desestruturação ou desaparecimento físico de diversos povos indígenas, especialmente aqueles localizados na região Amazônica”.
Em março, o PL 191/20 foi tema de reunião no Palácio do Planalto entre membros da 6CCR e integrantes do governo federal. Na ocasião, o MPF reafirmou a necessidade de diálogo direto com as comunidades indígenas. No mesmo mês, em reunião com representantes do Ministério da Justiça, Funai, Casa Civil, Ministério da Defesa e AGU, cobrou a elaboração e execução de um plano de segurança contra a mineração ilegal nas terras Yanomami, além da manutenção das Bases de Proteção Etnoambiental (Bape) na área.
No mês de junho, a 6CCR enviou ao Congresso Nacional nota técnica em que defende a rejeição integral do Projeto de Lei 191/2020. Segundo o documento, o texto apresentado pelo governo federal é “flagrantemente inconstitucional”, uma vez que confunde conceitos constitucionais distintos e viola o princípio da hierarquia das normas jurídicas.
Queimadas – A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF também se posicionou sobre o aumento das queimadas no país, especialmente na Amazônia e no Pantanal. Em nota pública divulgada em setembro, o órgão reafirmou a importância do manejo tradicional de recursos naturais pelas populações indígenas e ribeirinhas, e destacou a contribuição desses povos “para a manutenção e preservação ambiental de rios, florestas e da rica fauna dos biomas”. A nota pública frisou ainda que, somente depois de investigação e perícia, será possível identificar os responsáveis pelos incêndios, sendo que as evidências apontam para a expansão da atividade agropecuária como a causa mais provável.
Durante audiência pública promovida pela Comissão Externa da Câmara dos Deputados criada para o enfrentamento das queimadas, em outubro, a 6CCR apontou a inércia do Estado brasileiro em promover ações de proteção dos biomas, mesmo após o Ibama ter identificado áreas de alta vulnerabilidade, muitas delas com a presença de indígenas. Em novembro, a Câmara do MPF se reuniu com representantes da ONG Human Rights Watch para conhecer o relatório “O ar é insuportável: os impactos das queimadas associadas ao desmatamento da Amazônia brasileira na saúde”.
A defesa dos direitos das comunidades quilombolas também pautou a atuação da 6CCR em 2020. Em fevereiro, a comunidade Caiana dos Crioulos recebeu a imissão de posse de parte do seu território, a Fazenda Sapé, após articulação conduzida pelo órgão superior. A regularização da área foi possível após o repasse de R$ 1,9 milhão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Em abril, a 6CCR enviou recomendação à União para demovê-la da decisão de remover famílias quilombolas do território de Alcântara, no Maranhão, em razão do projeto de expansão do Centro de Lançamento Espacial de Alcântara (CLA), sobretudo durante a pandemia. Imediatamente, o governo federal informou que não tomaria qualquer medida concreta para o deslocamento das comunidades nesse período.
No mês de outubro, o Grupo de Trabalho Quilombos, da 6CCR, se reuniu com entidades representativas das comunidades quilombolas para entender os principais desafios enfrentados pelo grupo e acolher suas demandas. A Câmara do MPF também expediu uma série de ofícios com o objetivo de sensibilizar parlamentares para a necessidade de aumentar a previsão orçamentária destinada aos programas e ações voltados a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em 2021.
Pescadores e Ciganos – Outras comunidades tradicionais também receberam atenção da 6CCR em 2020. Em maio, o órgão divulgou nota técnica sobre o Projeto de Lei 131/2020, que dispõe sobre o direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras. A 6CCR defende que a medida é necessária para reconhecer os direitos dos pescadores artesanais e viabilizar políticas públicas em seu favor.
No mesmo mês, a 6CCR promoveu uma conferência virtual para debater os desafios, direitos e garantias dos povos ciganos na atualidade. O evento, que marcou o lançamento da coletânea de artigos “Povos Ciganos – Direitos e Instrumentos para sua Defesa”, reuniu membros do MPF, acadêmicos, especialistas e ciganos que participam da publicação para debater temas como identidade, preconceito, (in)visibilidade, legislação e direitos dos ciganos. Em setembro, a 6CCR participou do II Ciclo de Debates Online dos Povos Ciganos do Brasil, realizado pelo Instituto Cigano do Brasil (ICB).
Segurança alimentar – No mês de junho, a 6CCR divulgou nota técnica sobre a situação da alimentação nas escolas localizadas em territórios tradicionais no Brasil. O documento aponta para a necessidade de aquisição de alimentos produzidos por pequenos produtores e comunidades tradicionais como forma de proporcionar aos educandos alimentos mais saudáveis e frescos, garantir renda mínima para numerosas famílias, promover o desenvolvimento local sustentável, gerar renda nas áreas rurais e melhorar a qualidade de vida no campo.
Em novembro, a 6CCR promoveu um encontro virtual com representantes da sociedade civil e órgãos públicos para discutir a implementação de políticas públicas que visam garantir a segurança alimentar e nutricional nos territórios tradicionais brasileiros. A atuação da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa) foi apontada como um exemplo de boa prática a ser replicada em todo o país.
Administrativas – A nova composição da 6CCR tomou posse em 15 de junho, após aprovação dos nomes pelo Conselho Superior do MPF. A subprocuradora-geral da República Eliana Torelly assumiu a coordenação do colegiado, composto ainda pelos subprocuradores-gerais Ana Borges e Aurélio Rios, como membros titulares. Como suplentes, assumiram os subprocuradores-gerais Denise Vinci Tulio, Domingos Dresch e Mario Bonsaglia. Durante todo o ano, 1.407 procedimentos foram julgados durante as dez sessões ordinárias realizadas. Apenas 101 processos de revisão restaram remanescentes.
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