O ator David Vera Popygua Ju, o Peri, e a atriz Zahy Tenthehar Guajajara, a Ceci, durante ensaio da nova montagem da ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, no Theatro Municipal. – Adriano Vizoni/Folhapress

Montagem volta ao Theatro Municipal de São Paulo e interfere na partitura e leitura da figura indígena feita pelo original

Júlio MedagliaJosé Roberto Walker

São Paulo

A ópera “O Guarani“, de Carlos Gomes, será remontada no Theatro Municipal de São Paulo entre 15 e 25 de fevereiro. Um espetáculo de ópera é sempre uma festa. Dessa vez, não.

Baseado no livro de José de Alencar publicado em 1857, “O Guarani” retrata o índio brasileiro como um herói nobre, corajoso e virtuoso. A literatura indigenista, muito presente no Romantismo brasileiro, buscava valorizar as origens e o passado nacional, valorizando a nossa herança indígena, com o objetivo explícito de criar uma verdadeira identidade brasileira.

Não custa lembrar que quando se deu o lançamento do livro, o Brasil tinha pouco mais de 30 anos de vida independente e a afirmação da nossa identidade era questão central.

A obra-prima de Carlos Gomes, que estreou no teatro Alla Scala de Milão em 1870 com grande sucesso, faz parte do repertório operístico internacional. É útil lembrar que ela estreou um ano antes da “Aida“, de Verdi, obra que em muitos momentos reflete o impacto que “O Guarani” causou.

Mais recentemente foi encenada em Washington e Bonn tendo Plácido Domingo no papel principal e essa gravação é referência até hoje. Um dos coautores deste texto, o maestro Júlio Medaglia a regeu numa monumental temporada na Bulgária, comemorando o centenário da morte de Carlos Gomes e essa montagem foi transmitida pela televisão em toda a Europa.

Essa obra, uma das mais conhecidas e respeitadas nos palcos de todo o mundo, sofreu no Theatro Municipal de São Paulo uma montagem que não só alterou o sentido geral do texto e da ópera, como teve a ousadia de interferir na música espetacular criada por Carlos Gomes, introduzindo cantos pretensamente indígenas por sobre a partitura original.

Logo no primeiro ato um grupo, apresentado como “indígena”, começa a batucar pancadas regulares acompanhados de um violão que emitia acordes de mi menor, com acréscimo dos sons de uma rabeca.

Os verdadeiros indígenas nunca ouviram esses sons, essa harmonia e nem esses instrumentos. Num outro momento quando Ceci declara o seu amor por Peri e descreve as qualidades humanas do índio, o cenário é tomado por projeções da expedição Rondon que atropelam a delicadeza da cena.

Apesar do desempenho competente da orquestra e dos cantores, o espetáculo ofende quem respeita a nossa herança cultural. Usar a ópera de Carlos Gomes como base de um protesto a favor dos povos originários contradiz o sentido da obra.

Nela, o índio não é uma figura subestimada, que luta por espaço. Ele é o herói que se sobrepõe ao colonizador e é o único —juntamente com a amada— que sobrevive após a explosão do castelo. Ou seja é a grande figura do espetáculo e não um coitadinho explorado e oprimido.

Nessa montagem o encenador tem ainda a ousadia de interferir na partitura e no texto do final da ópera, um dos mais sublimes do repertório lírico internacional.

Menosprezar a nossa preciosa herança cultural não constrói nada e não ajuda nem mesmo aos índios que José de Alencar e Carlos Gomes glorificaram e que hoje são usados para depredar a sua obra, que deveria orgulhar todos os brasileiros.

O Guarani

  • Quando Sáb. (15) e dom., (16) às 17h e ter., (18) às 20h
  • Onde Theatro Municipal – pça. Ramos de Azevedo, s/n, São Paulo
  • Preço De R$33 a R$210, em theatromunicipalsp.byinti.com
  • Classificação 12 anos
  • Autoria Carlos Gomes
  • Elenco David Vera Popygua Ju, Zahỳ Tentehar e Araju Ara Poty
  • Direção Ailton Krenak

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/02/o-guarani-de-krenak-menospreza-heranca-cultural-de-carlos-gomes.shtml