Na edição especial literária da Folhinha, autor explora o preconceito vivido pelo garoto ao ir estudar na cidade
Imagem feita pelo ilustrador e colunista da Folha – João Montanaro
Além de ser o mês das férias, julho também é um mês de festa no universo da literatura. De 30 de julho a 3 de agosto, uma galera aficionada pelos livros se encontra na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro, para conhecer novos títulos e autores, discutir os assuntos importantes do momento e aprender um montão de coisas novas através da leitura e da imaginação.
Por isso, neste mês a Folhinha convidou grandes autores e ilustradores para compor uma edição especial, cheia de contos, poemas, fábulas e crônicas —que normalmente estão nos livros, mas que, veja só, vieram parar no jornal também! Legal, né? Boa leitura!

O poder de um apelido
por Daniel Munduruku
O menino chegou à escola da cidade grande um pouco desajeitado. Vinha da zona rural e trazia em seu rosto a marca de sua gente da floresta. Vestia um uniforme que parecia apertado para seu corpanzil protuberante. Não estava nada confortável naquela roupa com a qual parecia não ter nenhuma intimidade.
A escola era para ele algo estranho, que ele tinha ouvido apenas falar. Havia sido obrigado a ir e, ainda que argumentasse que não queria estudar, seus pais o convenceram dizendo que seria bom para ele. Acreditou nas palavras dos pais e se deixou levar pela certeza de dias melhores. Dias melhores virão, ele ouvira dizer muitas vezes. Ele duvidava disso. Teria que enfrentar o desafio de ir para a escola ainda que preferisse ficar em sua aldeia correndo, brincando, subindo nas árvores, coletando frutas ou plantando mandioca. O que ele poderia aprender ali?
Os dias que antecederam o primeiro dia de aula foram os mais difíceis. Sobre seu corpo colocaram uma roupa que lhe apertava, os pés, o tórax. Quase não conseguia respirar quando lhe vestiram o uniforme. Ou melhor, “a farda”, como se dizia naquela época.
Finalmente o primeiro dia de aula chegou. Arrumou seu material escolar em uma mochila, o lanche preparado carinhosamente pela mãe, e colocou-se a caminho. Tudo lhe parecia estranho demais, novo demais, esquisito demais. Tudo era sofrido demais.
Veja outros textos publicados na edição especial literária da Folhinha
No mês da Flip, a Folhinha convidou grandes autores e ilustradores para compor uma edição especial cheia de contos, poemas, fábulas e crônicas
- Conto de Daniel Munduruku fala sobre o primeiro dia de um indígena na escola
- Poema de Ricardo Azevedo fala sobre usar o coração para lidar com os problemas
- Leia fábulas inéditas de ‘Esopo Fabuloso’, novo livro de Daniel Kondo
- Conto de Alexandre Rampazzo fala sobre a timidez na infância
- Céu conecta todas as crianças do mundo em novo conto de Bruno Molinero
- Poemas de Gabriela Romeu e Penélope Martins falam sobre onças-pintadas
- Conto de Guilherme Karsten fala sobre a busca dos animais por um novo lar
- Poema de Sonia Rosa fala sobre a experiência de estar na praia pela primeira vez
- Conto de Keka Reis fala sobre a experiência de crescer
Quando chegou à frente da escola, parou. Olhou para as grandes paredes que a formavam e ficou desolado imaginando o que iria acontecer em seguida. Pensou em voltar atrás, mas se lembrou das palavras de seu pai que lhe dizia que um guerreiro nunca desiste. Seguiu adiante acompanhado de sua mãe que não o deixava um instante sequer. Seus pés doíam por causa do tênis que lhe obrigaram a usar e que era um número menor para o tamanho de seus pés. Aguentou com dignidade o desconforto. Quando chegou ao portão que o separava da vida da aldeia e a escola estancou buscando os olhos atentos de sua mãe. Não conseguiu pensar em nada. Apenas entrou.
Dentro do prédio da escola, avistou um grupo de meninos com idade aproximada da sua. Sentiu algum ânimo naquele momento. Viu que tinham rostos parecidos com o seu, cabelos lisos, corpo bronzeado. Ensaiou um sorriso, mas logo ficou desanimado porque um deles gritou logo que o avistou:
— Gente, olha o índio que chegou em nossa escola. Olha o índio que veio estudar aqui!
Ouviu explodir muitas risadas nascidas das palavras do colega. Ficou intrigado. Olhou para todos os lados, para cima e para baixo, procurando o que o garoto chamara de “índio”. Em sua inocência pensou tratar-se de um passarinho de uma espécie que não conhecia. Diante da aparente ignorância do recém-chegado, o grupo gargalhou ainda mais, constrangendo o novato que, finalmente, entendeu que estavam falando de sua pessoa. Pensou mais uma vez que eles o estavam recebendo de maneira gentil e que esta palavra – que ele nunca ouvira antes – era uma forma carinhosa de tratar o estreante. Infelizmente não era.
Dias depois descobriu que estava sendo chamado por um apelido.
— Apelidos são formas pouco gentis de tratar as pessoas, meu filho — disse-lhe a mãe um tanto preocupada.
— O que significa esta palavra, pai? —perguntou um dia para seu genitor enquanto pescavam no igarapé. O pai o observou sem pressa.
— Índio, meu filho, é como as pessoas da cidade se referem aos nossos povos antigos. É uma palavra que diz o que eles pensam de nós, e eles pensam coisas terríveis. Dizem coisas que enfraquecem nosso espírito. Eles não sabem quem somos e por isso nos deram um apelido que nos humilha e maltrata. Posso dizer a você que eles não sabem, mas nós sabemos quem somos, e isto é tudo o que precisamos para vivermos bem a nossa vida.
Depois destas palavras o pai abraçou o menino e sussurrou em seu ouvido:
— Somos fortes, somos guerreiros. Somos de um povo antigo e valente. Somos água, somos gente. Somos terra. Somos sementes.
O menino fechou os olhos agradecido, sabendo que muito ainda iria acontecer.
Daniel Munduruku, além de escritor, é educador e ativista pelos direitos dos povos indígenas. “O Karaíba” (ed. Melhoramentos), “Coisas de Índio” (ed. Callis) e “Um Dia na Aldeia” (ed. Melhoramentos) são alguns de seus livros.
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