Por Nicoly Ambrosio

Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil constatou os assassinatos de 211 indígenas no país a partir do ano de 2024, primeiro ano de vigência da legislação aprovada pelo Congresso Nacional, que interfere no processo das demarcações dos territórios. Imagem da coletiva no auditório da CNBB, em Brasília. (Foto: Giany Costa/Ascm CNBB).


Manaus (AM)  –  A comunidade Lago do Soares, onde vivem indígenas do povo Mura, no município de Autazes, no Amazonas, está sob constante pressão de interesses da indústria da mineração. A presença da empresa Potássio do Brasil, que pretende explorar uma mina de potássio no território Mura, tem provocado assédios, cooptação de lideranças e uma grave divisão interna entre as aldeias. O caso é um dos exemplos citados no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2024, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e divulgado nesta segunda-feira (28), em Brasília (DF).

Com base nos dados oficiais obtidos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), secretarias estaduais de saúde e ao Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), por meio de pedidos realizados via Lei de Acesso à Informação (LAI) e de consultas a bases de dados públicas disponibilizadas pelos órgãos, o Cimi constatou o assassinato de 211 indígenas no Brasil em 2024 – primeiro ano da vigência do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), aprovado pelo Congresso Nacional e promulgada nos últimos dias de dezembro de 2023.

Roraima lidera o ranking com 57 casos, seguido pelo Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33). A maioria das vítimas eram jovens (33,6%) entre 20 e 29 anos. No Amazonas, 12 vítimas eram do gênero feminino e 33 do gênero masculino.

O relatório do Cimi documenta também 230 casos de invasão possessória, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio dos povos indígenas em 159 Terras Indígenas (TIs) de 21 estados do Brasil, Desses conflitos, 19 ocorreram no Amazonas. 

A maioria dos casos desta categoria (61%) atingiu terras indígenas regularizadas (85), reservadas (10) ou dominiais (2). Os outros 62 territórios (39%) que registraram casos semelhantes não estão totalmente regularizados ou ainda não tiveram providências para iniciar seu processo de demarcação, como é o caso do território Mura em Autazes.

Entre os conflitos destacados pelo relatório estão os relativos a direitos territoriais. Segundo o relatório, com a promulgação da Lei do Marco Temporal, “uma das principais consequências da promulgação foi a estagnação quase completa dos processos demarcatórios em curso”.

Os Mura de Lago do Soares ainda aguardam a delimitação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Depois de mais de 20 anos de pedido na Funai, o órgão indigenista instituiu apenas em agosto de 2023 o Grupo de Trabalho para delimitação do território, mas o processo pouco tem avançado.

Um reflexo deste cenário, diz o relatório, é que aproximadamente 78 das terras e territórios indígenas que registraram conflitos relativos a direitos territoriais em 2024 não estão regularizadas.

“O povo Mura ainda aguarda a delimitação de seu território pela Funai, e os interesses da mineradora canadense têm servido, inclusive, para justificar a atuação política do setor em defesa da liberação generalizada da mineração em territórios indígenas”, diz trecho do relatório do CIMI.

Convidado a participar do lançamento do relatório, em Brasília, o tuxaua do Lago de Soares, Filipe Gabriel Mura, disse à Amazônia Real que, para enfrentar as tentativas de pressão e contornar conflitos internos, a comunidade Lago do Soares e outras aldeias Mura que se opõem à exploração de potássio, criaram novas organizações de base.

“A gente criou a organização Resistência Mura de Autazes, composta por cinco aldeias que hoje não são representadas pelo Conselho Indígena Mura. Pedimos afastamento. Nossa apresentação no relatório fala dessas cooptações e também dos julgamentos [decisões judiciais] que foram favoráveis à empresa. Isso causou divisões no nosso território, justamente por conta da mineração”, afirmou Filipe Gabriel.

felipe Gabriel, ao centro durante o lançamento do Relatório do CIMI sobre violência contra os povos indígenas no Brasil (Foto: Giany Costa | ASCOM CNBB).

O empreendimento mineráro em Autazes, cidade que fica entre os rios Madeira e Amazonas, ameaça diretamente as aldeias Lago do Soares e Urucurituba.  Lago do Soares é a área mais atingida, pois a mina de potássio fica dentro do território. Por esse motivo, a liderança destacou a reorganização política das aldeias que são contra o projeto de mineração, com a criação da Resistência Mura de Autazes (OIRMA). A organização se contrapõe ao posicionamento do Conselho Indígena Mura (CIM), que nos últimos anos têm se colocado a favor do empreendimento, causando divisões no povo. 

Em 2024, a Potássio do Brasil avançou com o projeto de exploração e obteve licenças ambientais emitidas pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), inclusive a licença de instalação. O governador Wilson Lima se posicina como defensor do empreendimento e este ano reafirmou seu apoio à execução da mineração de potássio.

Durante o evento de lançamento do relatório, Filipe Gabriel Mura reforçou a gravidade da violência enfrentada pelas comunidades em Autazes. “Desde 2019 a gente vem sofrendo ameaças ao nosso corpo. A conexão que a gente tem com a terra é tão forte que acaba atingindo nosso corpo também”, afirmou. Ele lembrou que Autazes é uma região majoritariamente de várzea, com acesso aos rios Madeira, Amazonas e Autaz-Açu, o que torna a ameaça ao território uma questão que extrapola os limites da comunidade, atingindo ecossistemas e cidades como Manaus, capital do Amazonas.

Filipe destacou ainda que a presença dos povos indígenas em espaços institucionais é parte fundamental da resistência, e que o relatório deve ser instrumento de ação e não apenas de leitura. A liderança criticou a violação de direitos constitucionais e a falta de compromisso das empresas com convenções internacionais como a 169 da Organização Internacional do Trabalho. Para ele, o impacto da mineração na região vai além das empresas e do Estado, porque atinge também as relações internas entre os próprios indígenas. 

“Hoje, a gente não sofre apenas violência do Estado e das empresas. Mas, infelizmente, a gente luta contra nosso próprio povo que passou pro outro lado. A empresa conseguiu levar eles pro lado de lá. O dinheiro fala mais alto. Estar aqui é uma forma de resistência. Não somos minoria, não somos o lado ruim. É necessário estar nesses espaços”, manifestou.

Os representantes do Cimi denunciaram durante o evento de lançamento do relatório o avanço de garimpeiros, madeireiros, narcotraficantes e fazendeiros sobre terras indígenas, incluindo territórios de povos isolados. Casos brutais de ataques por pistoleiros e fazendeiros ocorreram em diferentes estados, como Mato Grosso do Sul e Paraná. Um exemplo citado foi o ataque aos Avá Guarani na virada do ano, quando indígenas foram acuados com tiros, buzinas e fogos de artifício, numa ação de tortura coletiva. 

“O relatório revela um governo desgovernado, lento, distante e omisso diante dos ataques aos territórios. Revela que as políticas públicas são inócuas, desarticuladas que transformam os povos indígenas em pessoas e grupos vulnerabilizados sem assistência, sem terra, sem água, sem comida. Não são poucas comunidades especialmente nas regiões norte, sul e nordeste,  onde as pessoas não tem água para beber, não tem água para se banhar, não tem água para lavar uma roupa. Esse relatório busca trazer isso também”, disse Roberto Antonio Liebgott, um dos organizadores do relatório.

Marco Temporal em disputa

Na madrugada desta terça-feira (25), por volta das 3h, o povo Munduruku bloqueou a BR-163, no trecho sentido Itaituba (PA), em protesto contra a Lei 14.701, que oficializa o marco temporal e ameaça os direitos constitucionais dos povos indígenas (Fotos: @coletivoindigenakirimbawaita @ciki @coletivodajekapapeypi @coletivodauk @coletivowakoborun @thaigon_arapiun).
O povo Munduruku em março de 2025 bloqueou a BR-163, no trecho sentido Itaituba (PA), em protesto contra a Lei 14.701, que oficializa o marco temporal (Foto: @coletivowakoborun@thaigon_arapiun).

Aprovada e promulgada no final de 2023, a Lei 14.701/202, conhecida como Lei do Marco Temporal, impôs como critério central para a demarcação de terras indígenas. Também estabelece que os povos indígenas só teriam direito à demarcação de suas terras se estivessem ocupando-as até outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa imposição, segundo o Cimi, desconsidera a violência histórica, os deslocamentos forçados e as expulsões sofridas por diversos povos ao longo do século 20. 

Em 2024, o primeiro ano de vigência da norma, o que se viu foi o agravamento da insegurança jurídica sobre os territórios, a desaceleração de processos de demarcação e o crescimento de ataques e conflitos no campo. Em abril do ano passado, sob forte protesto de lideranças indígenas, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), instituiu uma comissão de conciliação para discutir o marco temporal e determinou a suspensão, em todo o país, dos processos judiciais que discutem a constitucionalidade da lei, pelo menos até que o Tribunal se manifeste definitivamente sobre o tema. 

O movimento indígena denunciou o processo de conciliação como unilateral e repleto de pressões políticas e empresariais, beneficiando empresas como a Potássio do Brasil. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da mesa de comissão em agosto de 2024,  por imposições inaceitáveis sobre os direitos indígenas. A comissão foi mantida mesmo com a saída da principal entidade representativa dos povos indígenas brasileiros. A Apib declarou que saiu da Câmara de Conciliação por um motivo simples: o colegiado tem 24 integrantes e a entidade representante dos indígenas apenas 6. A comissão tomará decisões por maioria dos votantes.

Os relatores especiais da Organização das Nações Unidas (ONU) também condenaram a proposta do ministro Gilmar Mendes sobre a regulamentação do marco temporal indígena, expressando preocupação com a possibilidade de retrocessos nos direitos dos povos originários no Brasil. Segundo os especialistas, a proposta ameaça os direitos garantidos pela Constituição e pode abrir caminho para mais conflitos fundiários e violações aos povos indígenas.

O documento da ONU ressalta que qualquer decisão sobre os territórios indígenas deve seguir padrões internacionais, incluindo o direito à consulta prévia, livre e informada, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os relatores apontam que a proposta discutida na Câmara de Conciliação do STF pode enfraquecer a decisão de setembro de 2023, que já declarou a tese do marco temporal inconstitucional.

De acordo com o Cimi, a nova legislação modificou os procedimentos administrativos, ampliando a interferência de terceiros – como governos estaduais, municípios e até particulares – nas fases iniciais da demarcação, o que tem dificultado e travado o já lento trabalho da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Além disso, todos os processos em andamento foram obrigados a se adequar às novas regras, sob o risco de serem anulados ou suspensos judicialmente. A lei ainda abriu caminho para que os territórios indígenas possam ser explorados economicamente por terceiros e expandiu as possibilidades de indenização por ocupação, o que torna os territórios ainda mais vulneráveis a interesses empresariais, políticos e latifundiários.

No caso do povo Mura em Autazes, a empresa Potássio do Brasil utilizou o argumento da ausência de demarcação formal e o respaldo jurídico do marco temporal para avançar sobre o território, mesmo com a oposição de parte das lideranças indígenas e sem consulta livre, prévia e informada segundo as diretrizes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

O relatório do Cimi destaca que, além da vigência da Lei 14.701, o ano de 2024 foi marcado por uma ofensiva legislativa sistemática contra os direitos indígenas. O Congresso manteve viva a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48/2023, que tenta inserir o marco temporal na própria Constituição.

Avançaram ainda outras iniciativas, como a criação de um grupo de trabalho no Senado para regulamentar a mineração em terras indígenas, a aprovação na Câmara do PL 2.159/202, o chamado PL da Devastação, que desmonta o licenciamento ambiental. e o PDL 717/2024, que tenta anular homologações já realizadas. 

Ifigênia Hirto, liderança Guarani Kaiowá da TI Panambi Lagoa Rica, em Mato Grosso do Sul, fez um apelo pela vida. Desde meados de julho de 2024, os Guarani Kaiowá da região vivem sob o cerco de um acampamento armado de fazendeiros que, com dezenas de camionetes perfiladas, ameaçam e atacam as comunidades do território. Os ataques se dão sob a custódia da Força Nacional.

Para as lideranças, a escalada de violência se deve à falta de providências no processo de demarcação da TI, que encontra-se paralisado desde 2011, quando a terra indígena foi identificada e delimitada.

“No estado do Mato Grosso do Sul, quem toma mais à frente somos nós mulheres. Quem vai lá em frente, cara a cara com agro, são as mulheres. A gente enfrenta eles com a nossa reza. Através do nosso canto. Muitas vezes, próprio o agro não deixa nós tocar o nosso no maracá. Eles proíbem a gente. Mas pelo nosso canto eles não nos intimidam, porque a gente pode cantar bem baixinho, com voz serena, e a gente consegue. No passado a gente foi muito atacado, massacrado. A gente teve uma retomada ano passado e estamos há um ano lá. A gente passou tantas tantas perseguições e lutas que, a gente não tinha mais sossego, mas é com a nossa reza e com o nosso maracá que conseguimos”, disse a liderança.

Jovens são as principais vítimas

Posto de saúde do Polo Base Silves na comunidade indigena Gavião1 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Um dos desafios enfrentados na produção do relatório do Cimi é a falta de transparência e detalhamento nos dados oficiais sobre violência contra indígenas. As informações fornecidas por secretarias estaduais de saúde e SIM não incluem especificações sobre o povo, território ou comunidade de origem das vítimas. Como esse campo sequer existe nos registros oficiais, torna-se impossível realizar análises mais aprofundadas sobre o perfil das vítimas, suas regiões de origem ou o contexto social e territorial em que ocorreram os crimes. 

Mas, além dos dados oficiais, o relatório do Cimi mantém uma sistematização própria dos casos de assassinatos de indígenas no Brasil, com base em informações obtidas por suas equipes missionárias em diferentes regiões do país e por meio de notícias divulgadas na imprensa. Em 2024, foram registrados 53 casos que resultaram em 55 vítimas fatais. Embora o número seja inferior ao total informado por fontes oficiais como o SIM e as secretarias estaduais de saúde, essa metodologia permite compreensão dos contextos em que os crimes ocorreram. Muitos casos foram relacionados a conflitos territoriais e violência cotidiana.

Os homicídios ocorreram em 14 estados, com destaque para Mato Grosso do Sul (16 casos), Roraima (7 casos, 8 vítimas) e Amazonas (5 casos, 6 vítimas). A maioria das mortes foi causada por armas brancas (23 casos) e armas de fogo (19), além de assassinatos por espancamento, enforcamento e outros meios (13). Entre as vítimas estão 35 homens, 18 mulheres e duas crianças. 

Os registros de “Violência contra a pessoa” englobam assassinatos, homicídios culposos, abusos de poder, ameaças, agressões físicas, racismo, tentativas de homicídio e violência sexual. Esses dados aumentaram em 2024. Foram 424 casos, contra 411 no ano anterior, o que representa um crescimento de 3,1% nas violações diretas contra indivíduos indígenas.

Um dos episódios mais brutais do ano ocorreu no sul da Bahia, no território tradicional Caramuru-Catarina Paraguaçu, onde a liderança indígena Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, foi assassinada a tiros durante um ataque à sua comunidade.

No Amazonas, foi registrado no município de Benjamin Constant, no Alto Solimões (AM), na tríplice fronteira – Brasil, Colômbia e Peru, um crime de assassinato e violência sexual que teve como vítimas três indígenas Tikuna de nacionalidade colombiana. Em 29 de janeiro de 2024, a Secretaria Municipal de Segurança Pública localizou os corpos de uma mulher de 28 anos e de seu filho de 4 anos. A mãe apresentava marcas de tiros e a criança teve o pescoço degolado. As buscas começaram após a filha mais velha, uma menina de 7 anos, ser encontrada caminhando sozinha na mata por moradores da comunidade de Porto Cordeirinho. Ela estava ferida e desorientada.

A criança, que ficou cerca de um dia perdida, foi socorrida e encaminhada ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Exames médicos comprovaram que ela havia sido estuprada, além de apresentar um ferimento profundo no pescoço e inchaço no rosto. No dia seguinte, a Polícia Civil do Amazonas prendeu em flagrante dois homens suspeitos. Um deles, Victor Macedo, peruano de 36 anos, confessou o estupro, os assassinatos da mãe e do filho de 4 anos, e a tentativa de homicídio da menina de 7 anos. Ele também apontou a participação de Noelson Tomé, de 25 anos, cunhado da mulher e tio das crianças.

“Nós nunca registramos tantos assassinatos de mulheres indígenas como neste último ano, isso é alarmante em um contexto de extremismo contra essas pessoas vulnerabilizadas”, afirmou Roberto Antonio Liebgott.

Outros dados alarmantes mostram que 208 indígenas cometeram suicídio em 2024, sendo o Amazonas novamente o estado mais afetado, com 75 casos. Os estados do Mato Grosso do Sul (42 casos) e Roraima (26) também registraram os maiores números de suicídios indígenas em 2024. As mortes se concentraram, majoritariamente, entre jovens: 32% das vítimas tinham até 19 anos, e 37% estavam na faixa entre 20 e 29 anos de idade. 

Demarcações paradas

Reunião dos moradores na comunidade de Soares (TI Mura) em Autazes (Foto via Whatsapp).

Os dados do Cimi também apontam um crescimento notável da violência fundiária, impulsionada pela morosidade nas demarcações e pela entrada em vigor da Lei do Marco Temporal. Das 857 Terras Indígenas com pendências administrativas no país, 555 ainda não contam com qualquer providência oficial para início do processo de regularização. 

No Amazonas, o cenário é igualmente preocupante. Entre as terras em situação de reivindicação, 173 seguem completamente ignoradas pelo Estado, sem nenhuma medida administrativa em curso. Outras 34 foram incluídas na programação da Funai para futura identificação e delimitação, com Grupos Técnicos já formados. Duas delas, as TIs Jauary e Vista Alegre, do povo Mura, já foram reconhecidas como território tradicional pela Funai e aguardam apenas a publicação da Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça. 

Dez TIs amazonenses se encontram em estágio mais avançado, já declaradas pelo ministério, mas ainda pendentes de homologação presidencial. Uma única terra foi homologada (Uneiuxi, dos povos Maku e Tukano), por decreto presidencial e aguarda registro. Duas outras (Jacareúba/Katauixi e Mamoriá Grande) receberam portarias da Presidência da Funai restringindo o acesso ao território por pessoas não autorizadas – um mecanismo de proteção temporária. 

A lentidão no processo de demarcação está diretamente ligada à explosão de conflitos fundiários. Segundo o relatório do Cimi, dois terços (78) das terras indígenas que registraram conflitos territoriais em 2024 ainda não estão regularizadas. Essas áreas concentraram 101 dos 154 casos de disputas por terra documentados ao longo do ano. 

A omissão do Estado em assegurar o direito originário à terra tem permitido a proliferação de invasões, exploração econômica predatória e violência contra comunidades que seguem lutando por reconhecimento e proteção. Os estados do Pará (19), Mato Grosso (18), Mato Grosso do Sul (17), Amazonas (16), Bahia (10) e Maranhão (6) estão entre os estados com mais conflitos fundiários registrados no período, impulsionados por projetos de mineração, agronegócio, crédito de carbono e especulação de terras.

Isolados sob ameaça

O relatório chama atenção também para os povos indígenas em isolamento voluntário, também chamados de povos livres. Em 2024, 22 Terras Indígenas com registros de presença desses povos foram alvo de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e outros danos ao patrimônio. No total, essas áreas, situadas nos estados do Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima, somaram 45 ocorrências desse tipo de violação.

Além disso, oito Terras Indígenas que abrigam 13 registros de povos isolados enfrentaram conflitos por direitos territoriais ao longo do ano. Embora os dados revelem uma queda no número de territórios invadidos em comparação com os anos anteriores – 36 TIs invadidas em 2022, 30 em 2023 e 22 em 2024 – o número de casos permanece alarmante. 

A Terra Indígena Vale do Javari, localizada na divisa do Amazonas com o Peru e a Colômbia, segue como uma das áreas mais vulneráveis à presença de invasores, mesmo sendo o território com o maior número de registros de povos isolados do país. São ao menos 19 grupos referenciados. 

Invasões por caçadores e pescadores são recorrentes, como mostram os vídeos feitos pelo cacique Alfredo Barbosa Filho, do povo Marubo da aldeia Maronal. Nas imagens, ele registra armadilhas de caça, sacos de lixo e sal, ossos de animais, pilhas, latas e garrafas abandonados em plena floresta na região do Alto Rio Curuçá. O material foi encontrado em uma área onde também foram identificados vestígios de indígenas isolados.

Racismo, memória e justiça

Ocupação Yakera Ine, dos Indígenas Warao, em Boa Vista(Foto: Felipe Medeiros/ Amazônia Real).

Além das violências diretas, o relatório sistematiza os efeitos da omissão do poder público. A ausência de políticas de saúde, educação, saneamento básico e acesso à água potável afetou milhares de indígenas em 2024. No capítulo sobre violência por omissão, há ainda destaque para a situação de indígenas Warao, migrantes da Venezuela, que vivem em abrigos precários em estados como Pará, Roraima e Bahia.

A publicação também traz análises sobre racismo estrutural, uso político dos direitos indígenas como moeda de negociação, e os entraves para o acesso à justiça. Um dos artigos propõe a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para reparar os crimes históricos cometidos contra os povos originários.

Sobre o relatório

Lançamento do Relatório do CIMI sobre violência contra os povos indígenas no Brasil (Foto: Giany Costa | ASCOM CNBB).

Produzido anualmente, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil do Cimi é uma das principais fontes de sistematização de dados sobre violações cometidas contra povos originários. A edição de 2024 reúne 19 categorias de análise, divididas em três grandes seções: violência contra o patrimônio indígena, violência contra a pessoa e violência por omissão do poder público.

Para sua elaboração, foram consideradas fontes diversas, incluindo dados regionais do próprio Cimi, denúncias de comunidades indígenas, reportagens da imprensa e dados públicos de órgãos como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e secretarias estaduais de saúde.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/marco-temporal-agrava-conflitos-alerta-cimi/