– Nossa solidariedade a K’ –
A Comissão de Assuntos Indígenas e o Comitê Laudos Antropológicos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vêm a público manifestar sua indignação e apelo ao Poder Judiciário do Estado do Amazonas, diante de grave violação dos direitos humanos, cometida contra uma mulher indígena do povo Kokama. A denúncia veio a público no dia 18 do corrente mês por matéria do jornalista Rubens Valente na plataforma de jornalismo Sumaúna, (https://sumauma.com/indigena-presa-em-cela-masculina-acusa-policiais-de-estupros-em-serie-enquanto-amamentava-bebe/).
Segundo a reportagem, a vítima – designada por K, para que seja preservada sua identidade – cumpria pena de prisão domiciliar, condenada por homicídio do qual ela supostamente teria participado, em 2018. Em dezembro de 2022, tendo sido vítima de violência doméstica, K procurou o auxílio do Estado, indo à delegacia no município de Santo Antonio do Içá, na região do Alto Solimões, Amazonas. Ela é mãe de uma criança menor de idade, e na ocasião, era puérpera do seu segundo filho, que tinha apenas dois meses. Nessa delegacia, ao invés de ser protegida, ela foi presa, sob o argumento de que havia sido expedida uma ordem de prisão após a sua condenação, da qual ela ainda não tinha conhecimento. Sem ter tido direito a uma audiência de custódia e sem imediata comunicação ao juízo da execução penal em Manaus (que só foi notificado após mais de cinco meses), ela foi colocada na cela com outros homens presos, pois a delegacia, que funciona como presídio improvisado, não conta com reparto feminino. K foi tratada como escrava sexual, tendo sido sistematicamente abusada por cinco policiais militares e um guarda municipal. Durante parte deste período ela se encontrava com seu filho de poucos meses, para poder amamentá-lo. Inclusive, relata ter sido abusada enquanto amamentava a criança. Ainda segundo a reportagem, o juiz da comarca local teria sido comunicado por ofício enviado da delegacia de polícia em dezembro de 2022 que a “custodiada […] encontra-se com seu filho com um mês de idade”. Entretanto, somente nove meses mais tarde é que ela foi transferida para presídio feminino em Manaus. Diante da Defensoria Pública, K relatou os abusos e a violência sofridas.
É inaceitável a violência que essa mulher indígena tem sofrido. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) já estabelece, em seu artigo 82, a necessidade de estabelecimento próprio feminino, e, em seu artigo 83, um ambiente específico para as lactantes e seus filhos. Além disso, a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), em seu artigo 21, tipifica como crime a conduta de “manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento”. Além do mais, o Brasil já conta, desde 2019, com a Resolução 287 do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), que “estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade”. Em seu artigo 3.o, no § 3º, a Resolução dispõe que diante da identificação de pessoa indígena, a Funai deve ser comunicada em 48 horas, o que poderia ter feito cessar o horror que se estendeu por mais de 8 meses na vida de K. Além disso, o artigo 14 estabelece que o Juízo de Execução Penal zele que seja garantida à pessoa indígena assistência conforme à sua especificidade cultural.
As Regras de Bangkok, Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (2010) são importantes diretrizes estabelecidas pela ONU. Elas inspiram a Resolução 287 do CNJ, entre outras diretrizes alinhadas com os direitos humanos, que buscam assegurar o direito de mães de filhos menores de idade de cumprir a pena em prisão domiciliar. No caso de K, além de ser mãe de menores e estar amamentando e já em prisão domiciliar, tratava-se de uma mulher indígena, o que exige mais precaução, por parte dos agentes do Estado, para evitar mais situações de violência. K não teve a sua identidade indígena reconhecida e muito menos seus direitos reconhecidos.
Diante da gravidade do caso, a ABA vem a público exigir que os crimes cometidos contra K sejam apurados e julgados com celeridade pela Justiça. Que seja iniciado imediatamente um acompanhamento psicológico e psiquiátrico especializado, em face da situação de extrema vulnerabilidade da indígena. Que sejam implementadas medidas protetivas diante de possíveis retaliações dos violentadores denunciados. Que qualquer medida de compensação tenha presente o grau intenso de violência física e psicológica causado pela situação de escravidão sexual sofrida por K ao longo de nove meses, com sequelas no presente. Por fim, a ABA solicita a averiguação célere da possível existência de casos semelhantes em delegacias ou no sistema prisional brasileiro, de detenção de mulheres nas mesmas celas em que há presos do sexo masculino. Para todas as mulheres privadas de liberdade: DIGNIDADE JÁ!
Brasília, 30 de julho de 2025.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA); sua Comissão de Assuntos Indígenas (CAI); e seu Comitê Laudos Antropológicos
Leia aqui a nota em PDF.
Fonte: https://portal.abant.org.br/violencia-contra-o-corpo-e-a-alma-de-uma-mulher-indigena-kokama/
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