Foto: Renard Batista
Com o propósito de enfrentar a exploração do trabalho infantil, combater a invisibilidade e garantir uma proteção integrada, com acesso a educação, saúde e oportunidades de renda, o Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (AM/RR) promoveu, na terça-feira (21/10), o 1º Fórum de Debates sobre o Trabalho Infantil de Indígenas e Migrantes, realizado em Boa Vista (RR). A iniciativa, coordenada pelo Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do TRT-11, em parceria com a Escola Judicial (Ejud), ocorre em meio ao aumento expressivo dos casos de trabalho infantil em Roraima.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), publicada em 2025 pelo IBGE, o Brasil registrava, em 2024, cerca de 1,650 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil. Isso representa um aumento de 34 mil jovens em relação a 2023, com variação de 2,1%. No estado de Roraima, o crescimento foi ainda mais preocupante: o número de casos aumentou 120% em um ano, sendo o maior crescimento proporcional registrado em todo o país.
Na abertura do evento, a desembargadora Joicilene Jerônimo Portela, coordenadora do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do TRT-11, destacou que os dados sobre trabalho infantil não são apenas estatísticas, mas refletem realidades concretas e histórias de vida. Segundo ela, “esses números têm rosto, têm história”. A magistrada ressaltou que a exploração do trabalho infantil, tanto entre indígenas quanto entre migrantes, é consequência de uma série de violações, como a perda de território, o deslocamento forçado, a xenofobia e a ausência de acesso a direitos básicos como moradia, educação e segurança. “A agenda de hoje foi cuidadosamente elaborada para enfrentar essa complexidade”. Para ela, o fórum representa um passo importante “pois materializa a união de forças essenciais, em uma luta que, para nós, não tem fronteiras”.
Já o desembargador David Alves de Melo Junior, vice-presidente no exercício da presidência do TRT-11, apontou o tráfico infantil como uma das formas mais graves de violação de direitos que afetam crianças na Região Norte. Ele detalhou que esse tipo de crime está diretamente relacionado à exploração do trabalho infantil. O magistrado reconheceu ainda que o enfrentamento ao trabalho infantil é uma atribuição direta da Justiça do Trabalho e reforçou o compromisso do tribunal com o tema. “O TRT-11 garante destaque por ser um assunto sério que demanda atenção”.
A desembargadora Ruth Barbosa Sampaio, diretora da Escola Judicial, afirmou que a parceria entre a Ejud11 e o Programa de Combate ao Trabalho Infantil visa fortalecer ações de proteção e enfrentamento à exploração, especialmente voltadas às populações mais vulneráveis. Ela lembrou que, neste ano, um projeto atendeu famílias no interior do Amazonas e agora se estende a Roraima, com iniciativas na mesma direção. Ao comentar a realização do evento, ressaltou que migrantes sofrem diariamente com a exploração no trabalho e defendeu que é preciso agir com urgência para garantir os direitos das crianças. Para a magistrada, elas são a base da sociedade e devem ter assegurado o direito de estudar, brincar, conviver com suas famílias e receber afeto e cuidado. “As nossas crianças não podem esperar, os vulneráveis não podem esperar, temos que agir”, disse.
Representando o Ministério Público do Trabalho (MPT), o procurador Jorsinei Dourado do Nascimento enfatizou a importância do evento e compartilhou uma história comovente que presenciou: uma mulher, adulta, descobriu que havia sido vítima de trabalho infantil ao perceber que, na infância, foi entregue a outra mulher que a criou como empregada doméstica, sem que ela reconhecesse essa condição como exploração. Para o procurador, esse tipo de relato evidencia o quanto é difícil, mesmo para quem vivenciou situações de violação, identificar-se como vítima. “Isso mostra como é difícil, mesmo para aqueles que passam pela exploração, se identificarem como pessoas vítimas do trabalho infantil”.
Trabalho infantil e comunidades indígenas
O vice-reitor da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Edson Damas da Silveira, que também atua como membro consultor da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal da OAB, foi responsável pela conferência de abertura e comentou sobre o tema Particularidade do Trabalho Infantil em Comunidades Indígenas. Em sua palestra, o professor destacou que existem mais de 300 povos indígenas no Brasil, cada um com formas distintas de viver, e que, por isso, comentários generalizados sobre a vida dos indígenas costumam ser pouco representativos, pois desconsideram essa diversidade.
O professor detalhou ainda que comentários preconceituosos sobre os povos originários, especialmente aqueles que associam os indígenas à “preguiça de trabalhar”, não condizem com a realidade. Segundo ele, os indígenas trabalham intensamente, e afirmar que são preguiçosos é incorreto. Salientou também que, desde muito cedo, crianças e adolescentes costumam auxiliar nos afazeres da tribo, o que pode ser observado em diversas comunidades. “Os indígenas trabalham e trabalham muito. Dizer que são preguiçosos não corresponde à realidade. Inclusive, crianças e adolescentes costumam, desde muito cedo, auxiliar nos afazeres da tribo, o que nos desafia a refletir sobre como o trabalho e a educação se desenvolvem dentro das próprias comunidades, considerando suas demandas e contextos específicos”.
Minicurso
O evento contou ainda com o minicurso “Direitos Humanos e a Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados: ferramenta para a defesa jurídica internacional dos povos indígenas”, ministrado por Paulo de Tarso Lugon Arantes, diretor-executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, jurista, ativista indigenista e climático. Também participou, como mediador do minicurso, o professor Fernando César Costa Xavier, professor associado do Instituto de Ciências Jurídicas e colaborador no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF). A iniciativa integrou o IX Seminário Roraimense de Direito e Sociedade.
Durante a apresentação, o palestrante discutiu como os tratados internacionais devem ser interpretados não apenas de forma literal, a chamada “letra fria do tratado”, mas também considerando o objetivo e a finalidade, conforme previsto no artigo 31 da Convenção. Foram apresentados exemplos de jurisprudência internacional que reforçam essa abordagem teleológica, como o caso Velásquez Rodríguez v. Honduras, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O minicurso também criticou o isolacionismo jurídico, que trata o direito internacional dos direitos humanos como um silo separado, e defendeu uma rede de fontes interpretativas que se entrelaçam, como raízes de uma árvore, fortalecendo a proteção dos direitos humanos.
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