Macapá (AP) – O Amapá enfrenta uma situação considerada “gravíssima” devido à disseminação do novo coronavírus, que já se espalhou por todos os municípios do estado, segundo o boletim divulgado pelo Ministério da Saúde. O primeiro caso positivo foi registrado pelas autoridades locais no dia 20 de março, e até o fechamento desta reportagem haviam 2.199 casos confirmados de Covid-19 e 61 mortes em decorrência da doença.

O primeiro paciente indígena com a coronavírus foi registrado em 13 de abril no boletim oficial. A primeira morte entre essa população, ocorrida no dia 4 do mesmo mês, só foi confirmada semanas depois, em 26 de abril.

Segundo o governo do Amapá, a vítima era uma mulher de 36 anos, pertencente à aldeia Kumenê, localizada no município de Oiapoque, extremo Norte do estado. Ela estava em tratamento para diagnosticar um possível câncer e a contaminação não teria ocorrido na terra indígena. Sua morte não entrou na estatística da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

Odair Jeanjacque (Foto reprodução Facebook)

Odair Jeanjacque, 28 anos, da etnia Galiby Kalinã/Karipuna, morador de Oiapoque, foi o primeiro indígena infectado pelo novo coronavírus no Amapá. Ele trabalha como enfermeiro do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Amapá e Norte do Pará. Por ser profissional da saúde, o caso dele também não aparece oficialmente nos números da Sesai.

Jeanjacque conversou com a agência Amazônia Real sobre o seu diagnóstico e falou das dificuldades que enfrentou.

“Fui diagnosticado com Covid-19 e peço a todos que fiquem em casa, não subestimem o vírus (ele é muito perigoso) e muito menos a doença. Foram dias de febre intensa, dor na cabeça, dores articular e muscular, náuseas, falta de ar, perdas de olfato e paladar, sangramento gengival e nos últimos dias (quando já estava recuperando o paladar) senti um gosto intenso de ferro. Os sintomas aparecem gradativamente.

Não precisei ser hospitalizado. Mesmo assim confesso que foram dias difíceis. Não é só uma ‘gripezinha’, e como podem ver, nem sintomas de gripe eu senti. Hoje já me encontro no grupo de pacientes recuperados e estou bem (sem sequelas).

Peço a todos, em especial a população indígena, que faz parte do grupo de risco, que evitem as cidades, fiquem nas suas aldeias, fiquem em casa, sigam as orientações da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde, das autoridades locais, dos caciques e das equipes de saúde das aldeias, não fiquem aglomerados, usem máscaras e lavem as mãos”, desabafou Jeanjacque.

Alerta nas Terras Indígenas

Atendimento de saúde aos povos indígenas (Foto: Dsei Amapá e Norte do Pará)

No Amapá, muitos indígenas habitam áreas de difícil acesso, um agravante quando se trata de acessibilidade aos serviços de saúde.

Aikyry Wajãpi, que sofreu há menos de um ano a perda de seu pai, o cacique Emyra Wajãpi, diz que os Wajãpi vivem um momento muito arriscado, pois as orientações de prevenção sobre a Covid-19 ainda não chegaram em sua Terra Indígena.

“Para muitos dos Wajãpi essa doença é muito obscura ainda. Precisamos das equipes multidisciplinares de saúde para fazerem palestras junto com os Agentes Indígena de Saúde (AIS), para os que moram mais próximos das cidades”, disse.

Terra Indígena Wajãpi está localizada entre Pedra Branca do Amaparí e Laranjal do Jari, que já registra oito mortes por Covid-19. “Só o Pólo-base Aramirã está funcionando. Faz muitos anos que outros postos centrais estão abandonados, não tem equipamentos completos para a equipe de saúde trabalhar, não tem máscara e álcool gel aqui”, alertou.

De acordo com Aikyry, a população dos Wajãpi tem aproximadamente 1.500 pessoas, divididas em cerca de 95 aldeias. Os Wajãpi fizeram um portão para fechar a estrada, somente as equipes vão ficar com a chave para abrir o portão. Isso é uma forma de se prevenir da Covid-19. Estamos lutando para que os Wajãpi que moram muito longe da cidade [Pedra Branca/Laranjal do Jari] fiquem em suas casas, permaneçam lá, sem ir à cidade”, informou.

Em todo o estado existem quatro Terras Indígenas (TIs) que são atendidas por dois diferentes programas. O Programa Oiapoque atua nas TIs Uaçá, Galibi, Wajãpi e Juminã, que tem uma população estimada de 8 mil indígenas das etnias Galibi, Kali’na, Galibi Marworno, Karipuna e Palikur Arukwayene. Já o Programa Wajãpi tem atuação na TI Wajãpi [Pedra Branca do Amapari].

As quatro TIs são assistidas pelo Dsei do Amapá e Norte do Pará, responsável pelo atendimento básico de saúde nas aldeias, nos pólos-base e nas duas Casas de Saúde Indígena (Casai), uma em Macapá e outra em Oiapoque. Macapá conta ainda com uma Coordenação Regional da Funai (Amapá e Norte do Pará) e, em Oiapoque também há uma Coordenação Técnica Local (CTL) do órgão.

A reportagem tentou contato com representantes do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) e com o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), mas até o momento não teve respostas do andamento dos trabalhos efetivados na região.

O Boletim Epidemiológico da Sesai de hoje (7 de maio) informa que há 176 casos confirmados de Covid-19 na população indígenas atendida pelos 34 distritos do país, 78 casos suspeitos e 10 mortos entre comunidades dentro dos territórios indígenas.

Os números da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), por outro lado, são diferentes. A entidade, que considera os casos de indígenas que vivem nas cidades e nas aldeias, calcula 37 mortes.

Manifesto pela vida

Atendimentos aos indígenas Wajãpi (Foto Dsei Amapá e Norte do Pará)

Diante da pandemia do novo coronavírus, o Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia (FNPDA) elaborou uma Nota Pública intitulada de “Aliança dos Povos da Floresta Pela Vida”. Quatro eixos guiam os trabalhos: campanha de prevenção; estrutura de gestão das políticas e programas públicos de prevenção e assistência; ações emergenciais na prevenção e assistência à saúde; ações sociais e econômicas.   

Dentre as 116 instituições que assinaram o manifesto, está o Iepé – Instituto de Formação e Educação Indígena. A entidade apoia as iniciativas de prevenção e combate ao novo coronavírus de acordo com a especificidade de cada região de atuação.

Segundo a coordenação do Iepé, todas as atividades previstas nas TIs estão suspensas desde 18 de março. As medidas preventivas foram tomadas para minimizar riscos para a equipe e parceiros locais. Os colaboradores seguem na ativa, em regime remoto, para garantir a continuidade do apoio e assessoria aos povos indígenas neste momento.

“Há uma preocupação muito grande que o coronavírus chegue nas TIs, considerando tanto o potencial de contágio e transmissão, quanto a falta de infraestrutura do sistema de saúde no estado do Amapá”, ressaltam Rita Lewkowicz, coordenadora do Programa Oiapoque, e Isabel Mesquita, coordenadora adjunta do Programa Wajãpi.

A situação dos enfermeiros

Pessoal da saúde sem o equipamento de combate da Covid-19
(Foto: Dsei Amapá e Norte do Amapá)

Desde a confirmação do primeiro indígena infectado, as coordenadoras consideram a situação especialmente preocupante. O enfermeiro que adquiriu Covid-19, por exemplo, estava trabalhando na Casai do município, local de grande circulação de indígenas de diferentes aldeias em estado de vulnerabilidade.

Rita Lewkowicz explica que, no Oiapoque, existe um fluxo muito grande de indígenas e não indígenas entre as aldeias e as cidades de Oiapoque e Saint-Georges (Guiana Francesa).

“A primeira medida tomada em prevenção ao coronavírus do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas de Oiapoque (CCPIO) foi a suspensão de todas as atividades e do ingresso de não indígenas nas aldeias, com exceção dos profissionais de saúde. Para isto, foi instalada uma barreira e base de apoio no Centro de Formação, localizado na entrada do ramal do Manga (local de ingresso à TI Uaçá), para realizar o controle da entrada e saída de pessoas e orientar a quarentena neste local para os indígenas que estão retornando para as suas aldeias”, salientou Lewkowicz.

O Iepé, por meio do Programa Oiapoque, apoia ainda a equipe no Centro de Formação com alimentos, produtos de limpeza e de higiene. A entidade atua também na elaboração e difusão de materiais informativos sobre a doença inclusive em línguas indígenas, como o panfleto na língua parikwaki.

“Há também um canal de comunicação virtual do CCPIO, lideranças e organizações indígenas, que está funcionando parcialmente, com o objetivo de manter informações atualizadas referentes aos casos da doença, às pesquisas sobre o coronavírus, às medidas e políticas públicas em andamento”, acrescentou Lewkowicz.

A coordenadora afirma que, até o momento, as ações estão sendo eficazes, contudo, com o prolongamento do período de isolamento, novas estratégias precisarão ser elaboradas para garantir a saúde e segurança alimentar desses povos. Em muitas aldeias, a alimentação depende de produtos industrializados e a renda familiar provém da comercialização da farinha e outros produtos na cidade.

“Ainda que a recomendação do CCPIO e das instituições seja de isolamento nas aldeias, há uma demanda dos indígenas de irem à cidade principalmente para a aquisição de gêneros alimentícios e outros produtos. A sede do município, por sua vez, está sofrendo com o desabastecimento de alimentos devido à má situação da rodovia BR-156 que leva à Macapá, e a fronteira com a Guiana Francesa está fechada, sem permitir o trânsito entre as duas cidades, seja por via fluvial ou terrestre”, destacou Lewkowicz.

Antes da confirmação de casos no Amapá, o Programa Wajãpi do Iepé assessorou os Agentes Socioambientais (Asa), alguns professores Wajãpi em formação e diretores das organizações para que repassassem informações corretas sobre o coronavírus (origem, classificação como epidemia mundial, confirmação de casos no Brasil, sintomas). Foram abordadas também as precauções a serem tomadas, como medidas de higiene, evitar o contato próximo e ida às cidades. As informações foram transmitidas às famílias pelo rádio com intuito de alertar a comunidade, evitar o pânico e notícias falsas.

Em articulação com Funai e Dsei, o Iepé ajudou a levantar o número de famílias em Macapá para apoiá-las com cestas básicas e produtos de higiene durante o período de isolamento na cidade. Até o início de abril, todas essas famílias tinham retornado à Terra Indígena Wajãpi.

“Nossa preocupação no momento é com algumas famílias que moram na Terra Indígena Wajãpi nas proximidades da estrada Perimetral Norte (BR210) e com alguns indígenas que trabalham na cidade, pelo trânsito entre aldeia e cidade [Pedra Branca do Amapari e Macapá]. Seguimos reforçando as recomendações aos Wajãpi sobre as precauções que devem tomar para evitar o contágio, em contato com as organizações dos Wajãpi, e acompanhando a situação das aldeias que têm comunicação (rádio ou internet)”, finalizou Isabel Mesquita.

O Iepé tem acompanhado com atenção o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo solicitado pelos indígenas. “Para resgatar esse auxílio – assim como outros benefícios sociais e salários -, os indígenas têm que se deslocar para bancos nas cidades. Acreditamos que o ideal neste momento seria que os suprimentos necessários (alimentação, produtos de higiene e medicamentos) fossem disponibilizados e entregues diretamente para as comunidades indígenas, evitando seu deslocamento para a cidade”, considerou Lewkowicz.

Colapso do sistema

Desinfecção da Feira do Pescado em Macapá
(Foto: Carlos Cardozo/Governo do Amapá)

Assim como a maioria dos estados brasileiros, o sistema de saúde no Amapá se aproximava do colapso antes mesmo de a pandemia chegar. Hospitais com falta de leitos e de aparelhos para exames como tomografia –  que ajuda na identificação da Covid-19 -, falta de EPIs – Equipamentos de Proteção Individual para profissionais e materiais básicos para atendimentos de pacientes agravavam o cenário.

Diante desse histórico, com mais de 845 mil habitantes e aumento do números de infectados, o quadro pode se deteriorar se a população não cumprir o isolamento social. O Ministério Público do Estado pediu urgência para julgamento de uma ação para garantir aos pacientes confirmados ou suspeitos a transferência imediata ao devido leito de isolamento.

Apesar da instalação das unidades específicas para tratar pacientes, os promotores e defensores públicos afirmam que as unidades funcionam aquém da capacidade divulgada. “Dos 58 leitos anunciados para o Centro Covid 2, apenas 16 estão ativos, sendo que destes, 15 estão ocupados. Na unidade Covid 1, dos 26 leitos de UTI anunciados, apenas 22 estão em funcionamento, e destes, 15 estão em uso”, destacou a promotora Fábia Nilci em nota divulgada na última segunda-feira.

Indígenas Wajãpi são afetados pela mineração (Foto: Heitor Reali/Iphan)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/coronavirus-no-amapa-indigenas-tentam-barrar-avanco-da-pandemia-nos-territorios/

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