“Sou uma mulher de pouco leite materno e lembro que não tinha possibilidade de preparar o alimento para o meu filho recém-nascido dentro do abrigo. Pedi autorização para esquentar uma água e fui negada. Então eu ia para a rua às 6 horas, recém-parida, pedir para as pessoas ferver uma água para que meu filho pudesse comer.” A lembrança é de Yidri Torrealba, venezuelana que migrou para Boa Vista (RR) em 12 de janeiro de 2018 e conheceu de perto a dura realidade de um abrigo, um espaço onde a palavra dela e de outros imigrantes não contava.

Yidri e o filho recém-nascido viveram por meses no abrigamento fornecido pela Operação Acolhida, criado pela Força-Tarefa Logística Humanitária para Roraima, uma ação coordenada pelo Exército brasileiro. Dois anos depois, Yidri ainda tem vontade de chorar só de lembrar daqueles primeiros dias. Mas ela e outras quase 200 famílias venezuelanas enfrentam um novo obstáculo. Há quase dois anos, ocuparam o antigo Clube dos Trabalhadores, localizado no bairro periférico Jóquei Clube de Boa Vista, e formaram a ocupação Ka’Ubanoko. No último dia 17 de setembro, o Exército comunicou que eles serão despejados.

A comunidade Ka’Ubanoko”, palavra na língua indígena Warao que significa “meu espaço para dormir”, tem até o dia 28 de outubro para sair do local. Ela é uma das duas últimas ocupações autogerida por migrantes em Roraima. A Operação Acolhida sugere dividir o Ka’Ubanoko, criando um abrigo específico para indígenas e realocando os não-indígenas em vagas remanescentes nos abrigos geridos pelo próprio Exército. Outra alternativa dada à comunidade não-indígena é deslocar esses migrantes para outros Estados, alegando que eles teriam maior possibilidade de encontrar trabalho. Durante a pandemia do novo coronavírus, esse processo de interiorização tem enviado cerca de 1.500 migrantes a outras cidades do País por mês, segundo dados da Secretaria de Estado do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes).

Mães indígenas na Ka’Ubanoko’ (Foto: Bruno Mancinelle/Amazônia Real)

O ordenamento de fronteira, o abrigamento e a interiorização dos migrantes são os pilares da atual gestão militarizada adotada pelo governo de Jair Bolsonaro, com apoio de agências da ONU e locais. O comunicado de despejo para os moradores de Ka’Ubanoko foi anunciado em meio à pandemia pela Operação Acolhida, acompanhada da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima (CMDH-RR) e Setrabes.

A Ka’Ubanoko se diferencia de outras ocupações espontâneas por ser uma comunidade interétnica, composta por migrantes venezuelanos não-indígenas (criollos), cerca de 160 famílias, e por povos indígenas em deslocamento das etnias Warao, Pemon, Eñepa e Kariña. Aproximadamente 132 famílias indígenas coabitam o espaço com a autonomia da autogestão. Ao todo a comunidade abriga cerca de 900 pessoas.

Ka’Ubanoko é um contraponto à ausência das políticas migratórias efetivas”, explica Marcia Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras DA Universidade Federal de Roraima. Para a pesquisadora, as ocupações espontâneas são uma resposta às soluções apresentadas pelo Estado, insuficientes para atender as demandas sociais da sociedade. “São de grande importância para organização social, para autonomia, para a autogestão, que vão fazer toda uma diferença no contexto migratório em que as políticas migratórias não são efetivas, são apenas emergenciais, tanto da parte do Estado quanto pelas agências nacionais, internacionais e organismos governamentais.“

Em Boa Vista, formaram-se dez grandes ocupações espontâneas em diferentes bairros. Oito delas já foram desativadas (Antiga Sec. Educação, Totozão, Segad, Antiga Creche, Futura PM, Clínica de Reabilitação, Antigo Shopping e Casa Bernardo Coutinho). As 1.274 pessoas que viviam nelas foram realocadas para abrigos, passaram a receber temporariamente auxílio-aluguel ou foram interiorizadas. Permanecem ativas as ocupações na Embratel e do Clube do Trabalhador (Ka’Ubanoko).

Segundo nota da Operação Acolhida, as desocupações são realizadas conforme o Plano Emergencial para as Ocupações Espontâneas, construído com Ministério Público Estadual e Federal, Defensoria Pública Estadual e da União, Advocacia Geral da União, governos estadual e municipal, instituições civis e agências. O documento foi aprovado em março e, ainda de acordo com a nota, atende “todos os critérios humanitários legais”, contudo. Mas em momento algum as comunidades venezuelanas das ocupações espontâneas foram ouvidas.

Há alguns meses, os migrantes venezuelanos sofriam com ameaças de despejo. As organizações que giram em torno da Operação Acolhida negavam esse risco, mas não abriram espaço para o diálogo e a transparência. “Eu sei o que é uma consulta prévia e o que estão fazendo não é uma consulta. Eles nos deram uma informação e só deram uma opção: abrigo. Eles pensam que podem decidir por nós porque somos indígenas migrantes, mas conhecemos a nossa história, não somos migrantes, somos indígenas de América toda e temos direitos de consulta livre, prévia e informada”, enfatiza Leany Torres, vice-cacique indígena Warao da ocupação Ka’Ubanoko.

Autonomia X abrigamento

  • (Foto: Bruno Mancinelle/Amazônia Real)
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Ao receber a notícia da possível desocupação, as lideranças do Ka’Ubanoko elaboraram uma carta que foi protocolada no Ministério Público Federal e também apresentada para a Defensoria Pública do Estado e a Operação Acolhida. O documento apresenta a forma de organização comunitária, tecida por meio de comitês e divisão de tarefas ordenadas e coletivas, e por que os migrantes se opõem à estratégia de redistribuição dos comunitários nos abrigos.

“Queremos discutir alternativas e propostas acerca dos possíveis impactos que poderemos sofrer ao passar a viver em um abrigo. Entendemos que derrubar os barracos e construir barracas não é uma solução. Entre nós existem pessoas que nunca vão se adaptar a um abrigo e isso as levarão a viver nas ruas e gerar outro problema para o Estado. O processo de interiorização é ineficaz para a crise humanitária vivida pelo migrante venezuelano. É de vontade de todos que esse espaço continue”, diz o documento.

A proposta inicial da realocação dos migrantes venezuelanos é separar criollos e indígenas para evitar os conflitos históricos existentes entre os grupos. Mas eles argumentam que a convivência na ocupação fez com que mudassem essa perspectiva. “Depois de quase dois anos convivendo juntos, descobrimos a importância de superar os conflitos históricos, a fim de nós, juntos, construirmos um futuro melhor para os nossos filhos”, diz o documento dos migrantes da ocupação Ka’Ubanoko.

“Em consenso, acreditamos que um espaço como esse (da ocupação espontânea) é bem melhor que um abrigo, pois todos nos sentimos livres para as tomadas de decisões, criar normas que norteiam nossa vida, normas essas que são assumidas, respeitadas e vividas por todos, somos uma comunidade.”, explica a vice-cacique Leany Torres.

Segundo dados da Operação Acolhida, dos 100 mil venezuelanos que vivem em Roraima, apenas 7 mil vivem em 13 abrigos. Atualmente, há três tipos de abrigos: para Família, Solteiros e Indígenas. A gestão dos espaços é compartilhada. O Ministério da Cidadania e Acnur são responsáveis pela coordenação de acolhimento e assistência, e as Forças Armadas pela logística e saúde. A migração se intensificou a partir do ano de 2014.

Ex-coronel critica ativismo 

O ex-secrtério Roger herzer com a desembargadora Tânia Vasconcelos (Foto: Orib Ziedson/ TJRR)

Mesmo com uma estrutura básica oferecida pela Operação Acolhida, esse modelo não abre espaço para a autogestão por parte dos migrantes. Para o então secretário adjunto da Setrabes e ex-coronel do Exército Roger Hamilton Herzer, esse modelo de autogestão não funciona para a Ka’Ubanoko, exatamente por se tratar de uma comunidade que é parte indígena. Para o secretário, a comunidade não possui capacidade de gestão.

“Autogestão é importante, é até legal, mas para autogestão eles devem ter um lugar. É muito bacana o que eles construíram lá, mas não está em um lugar legal e não tem como melhorar. A solução temporária era criar um terceiro abrigo indígena e eles criam senões alegando que não têm autonomia, mas não tem como dar autonomia para eles sendo que eles não possuem ingerência de gestão”, argumenta o secretário.

Segundo Herzer, o maior empecilho para a desocupação da comunidade é a questão indígena que coabita o espaço. “Todas as ocupações tinham uma organização e hoje com uma bandeira que tem lá, de indígenas, eles estão mais mobilizados e tem alguns ativistas lá no meio, sempre tem, que busca os direitos indígenas, que é totalmente inválido”, diz. “Hoje temos um problema muito grande em Roraima: é um estado indígena que tem toda uma economia bloqueada porque tem toda uma área indígena demarcada, pensar em criar uma terra indígena para indígenas venezuelanos é complicado para o Estado.”

Roger Hamilton Herzer concedeu entrevista à agência Amazônia Real no dia 24 de setembro. No dia 29, a Setrabes demitiu o secretário-adjunto. Procurada, a secretaria informou que a demissão foi por “ajustes administrativos  e otimização da gestão na Setrabes”, disse a assessoria de imprensa.

Direito à moradia

Os indígenas se dividem entre barracas de camping, barracos improvisados e escombros. (Foto: Bruno Mancinelle/Amazônia Real)

No dia 2 de setembro, líderes da comunidade Ka’Ubanoko procuraram a Defensoria Pública do Estado para buscar propostas, solicitar amparo e proteção social para as famílias que correm o risco de despejo. A principal dúvida da comunidade naquele momento era se o direito à moradia evitaria um possível despejo. Mas o defensor Natanael Ferreira explicou este não deve ser o principal argumento, caso haja defesa ao despejo. “O que vamos tentar promover é a cultura indígena e a moradia vem como uma garantia de preservação da cultura indígena, porque eles não podem ser espalhados, mas a preservação da cultura perpassa pela habitação comum”, explica.

A Lei 14.010/20, implementada no último no último mês pelo Senado, proíbe ação de despejo de inquilinos até 30 de outubro de 2020, devido o reconhecimento da calamidade pública em decorrência do novo coronavírus. Essa lei abrange os imóveis urbanos (comerciais e residenciais) e atinge todas as ações ajuizadas a partir de 20 de março, porém abre brecha para os despejos de imóveis públicos.

“A Operação Acolhida não pode realizar o despejo sem uma autorização judicial. Eles não têm o poder de polícia e não pode por si só sair fazendo esse tipo de coisa, eles não podem sair por aí levando as pessoas, por isso, tentam o diálogo”, explica o defensor Natanael.

Os militares envolvidos na Operação Acolhida passaram a convocar diariamente reuniões com os moradores da ocupação para falar sobre o despejo. Os venezuelanos se sentem entre ameaçados e intimidados. A comunidade permanece organizada e firme no propósito de autogestão.

“O que queremos é ser integrados à sociedade brasileira, queremos ser autônomos, e que tenhamos a mesma participação que todo o brasileiro, queremos pagar luz, a água, queremos direitos de uma casa, queremos uma educação formal para nossos filhos, queremos aportar aqui ao País”, diz Yidri Torrealba, hoje uma das lideranças da comunidade Ka’Ubanoko, Ela afirma que se não for possível permanecer no Clube dos Trabalhadores, que seja oferecido um espaço alternativo.

“Não queremos ser dirigidos por nenhuma ONG, nem o Exército. Eles não têm as respostas de longo prazo, mas nós temos: construção de comunidades autônomas”, afirma a líder. Yidri, agora, grávida de oito meses do seu segundo filho brasileiro que está previsto para nascer no final de outubro, data anunciada para o despejo, deseja seguir construindo coletivamente algo que nenhum abrigo militarizado pode garantir: que seu filho durma bem no espaço que efetivamente nomeia de “meu pedaço da Venezuela no Brasil”.

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Fonte: https://amazoniareal.com.br/exercito-ameaca-despejar-ocupacao-de-venezuelanos-em-roraima/

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