Manaus (AM) – O desmatamento na Amazônia cresceu 279% em março de 2020, em comparação ao mesmo mês do ano passado, segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Imazon. O cenário de destruição marca o início da temporada da devastação anual da floresta, com um componente grave este ano: o começo da disseminação da pandemia do novo coronavírus nas terras indígenas dos estados da Amazônia Legal. Mesmo diante dessa vulnerabilidade sanitária, os principais chefes da fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsáveis pelas megaoperações de combate às ações de madeireiros, garimpeiros, grileiros e fazendeiros, foram exonerados e estão cada vez mais ameaçados por grupos de ruralistas de extrema direita, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Na quinta-feira (30), as exonerações de Renê Luiz de Oliveira, da coordenação geral de fiscalização ambiental, e de Hugo Ferreira Netto Loss, da coordenação de operações de fiscalização, pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e pelo presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, foram publicadas no Diário Oficial da União.
Antes, no dia 14 de abril, foi exonerado o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Alves Borges Azevedo, que é major da Polícia Militar de São Paulo e considerado homem de confiança do ministro Salles, além de indicado por Bolsonaro. O governo não se manifestou sobre as exonerações.
Olivaldi Azevedo, Renê Luiz de Oliveira e Hugo Ferreira Netto Loss estavam à frente das operações de combate a crimes ambientais na Amazônia no contexto da pandemia da Covid-19. Desde o dia 4 de abril, o Ibama realizava ações na região sul do Pará para prevenir o avanço da pandemia em terras indígenas e a destruição das florestas neste período de isolamento social da população. Na ação, os fiscais expulsaram garimpeiros e madeireiros, e destruíram o maquinário utilizado pelos invasores nas Terras Indígenas Araweté (do povo Araweté e indígenas isolados do Igarapé Bom Jardim), Apyterewa (dos Parakanã) e Trincheira Bacajá (dos Kayapós e dos Xikrin).
Os fiscais do Ibama ainda destruíram os acampamentos dos madeireiros e de garimpeiros, além de apreenderem madeira e animais silvestres. As ações foram tema de reportagem no programa Fantástico no dia 12 de abril, e na semana seguinte começaram as exonerações pelo ministro Ricardo Salles.
Foi no Pará que, em agosto de 2019, madeireiros e fazendeiros se uniram para promover o ato criminoso de atear fogo nas florestas nos municípios de Novo Progresso e São Félix do Xingu, ação ficou conhecida como “o dia do fogo”. O objetivo era cobrar de Bolsonaro a promessa de que fiscais do Ibama não iriam mais destruir maquinários apreendidos em operações. Os manifestantes cobraram, ainda, que o governo desenvolvesse projetos econômicos nas regiões sul e sudeste do estado para impulsionar o agronegócio. Após o ato, o ex-coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Hugo Loss disse, em entrevista à Amazônia Real, que “não se desenvolve um país rico como o Brasil debaixo do sabre de uma motosserra ou com mercúrio nos igarapés. Isso não é desenvolvimento, isso não é o futuro, isso é o passado”.
Para a Associação Nacional da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema), que representa entre outros servidores federais os do Ibama, essas exonerações são retaliações ao trabalho dos fiscais e os expõe a insegurança diante das ameaças que recebem de madeireiros, garimpeiros, grileiros e fazendeiros.
“O que está acontecendo é muito grave. Esses servidores estão sendo punidos por estarem cumprindo com as suas obrigações, com a sua função. Eles estão sendo removidos não se sabe para onde e isso é preocupante. Tratam-se de pessoas bem preparadas, com conhecimento e experiência na área de fiscalização ambiental, que conhecem a Amazônia muito bem”, alertou Elisabeth Uema, secretária executiva da Ascema. “Essa operação foi para tentar tirar garimpeiros e madeireiros de terras indígenas, olha a delicadeza e a importância da atuação desses servidores. A ação não é só para defender fauna e flora, mas a vida humana e os indígenas do novo coronavírus”, completou ela.
Policiais militares na fiscalização
A militarização do primeiro escalão do Ibama começou em janeiro deste ano com a nomeação de Olivaldi Alves Borges Azevedo, que é major da Polícia Militar de São Paulo, para a Diretoria de Proteção Ambiental (Dipro). Indicado por Jair Bolsonaro, ele substituiu Luciano Meneses Evaristo, que era analista ambiental com mais de 30 anos de serviços no órgão.
Em março, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o major Olivaldi dispensou o servidor José Augusto Morelli, que ocupava a chefia do Centro de Operações Aéreas da Dipro. Em 2012, Morelli multou o presidente Jair Bolsonaro por pesca ilegal; uma decisão “administrativa” e não “pessoal”.
No lugar do major Olivaldi, o ministro Ricardo Sales nomeou, no dia 14 de abril, o coronel da reserva da PM paulista, Olímpio Ferreira Magalhães. As circunstâncias da exoneração na chefia da Dipro estão sendo investigadas pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal.
O ministro Sales, no dia 30 de abril, substituiu Hugo Loss na coordenação de operação de fiscalização por Leslie Tavares. Segundo reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, o novo coordenador liberou a devolução de duas balsas de garimpo irregulares, apesar de decisão judicial contrária. As embarcações haviam sido apreendidas no município de Jutaí, no oeste do Amazonas, próximo à Terra Indígena Vale do Javari, onde há povos isolados e de recente contato.
Na coordenação geral de fiscalização ambiental, Renê Luiz de Oliveira, foi nomeado pelo ministro Ricardo Salles o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães Júnior, também de São Paulo. Ele foi superintendente do Ibama no Pará. É acusado de beneficiar uma empresa britânica chamada Tradelink ao emitir licenças de exportação retroativas para legalizar o envio madeira ilegal da Amazônia ao exterior, diz o site Intercept.
Para Elisabeth Uema, a militarização da área ambiental afeta a qualidade do trabalho desempenhado dos órgãos ambientais. “Hoje, todos os gestores, especialistas, diretores e o alto escalão do ICMBio são pessoas alheias à área ambiental, a maioria são PMs do estado de São Paulo e vinculados ao ministro Ricardo Salles. ‘Ah, tem alguém que trabalhou na área ambiental, ficou não sei quanto tempo na Polícia Ambiental’. Não é a mesma coisa, entende? Porque o fiscal ambiental, o gestor de unidade de conservação, a pessoa que trabalha na área ambiental, tem que ter um conhecimento mais profundo da área, precisa saber, por exemplo o que caracteriza um crime ambiental, tem que conhecer a área, enfim. E é isso que está acontecendo agora com o Ibama e vai ter consequências a médio e o longo prazo”, disse.
A secretária-executiva da Ascema diz temer um aumento dos ataques contra os servidores do Ibama. “Tem desdobramentos que estamos acompanhando, como para ver para onde eles serão removidos (Renê e Hugo), pois isso pode acarretar outros problemas. Um deles, por exemplo, não pode ir para qualquer lugar da Amazônia, porque já sofreu ameaças de morte. O presidente [do Ibama, Eduardo Bim] já disse que não vai removê-los para esses locais, mas é complicado porque essas pessoas têm vida própria, família, vida estruturada. Estamos acompanhando isso com muita atenção, até para oferecer a eles suporte jurídico se for necessário”, destaca.
Abertura para invasões
A exoneração dos coordenadores da fiscalização ambiental do Ibama deixou as organizações indígenas e ambientalistas ainda mais apreensivas sobre o desmonte no setor promovido pelo governo Bolsonaro.
A indígena Ângela Kaxyuana, coordenadora-executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), tem opinião parecida com a de Luiza. “Quando o governo faz a exoneração de diretores do Ibama, da Funai ou do ICMBio, quando eles, minimamente, fazem o seu papel de fiscalização, monitoramento e desintrusão dos territórios, nos fragiliza e deixa o caminho aberto para invasões. O que tem acontecido é isso”, diz.
“Essas ações do governo federal de intimidar os órgãos fiscalizadores fazem parte do pacote do desmonte e do retrocesso dos direitos dos povos indígenas, quando se trata de ações que garantem a proteção dos territórios, as fiscalizações e desintrusões. Essa operação que aconteceu na Terra Indígena Araweté e Apyterewa, em Altamira (PA), mostra apenas um exemplo do que tem acontecido no Brasil todo, sobretudo na Amazônia, que tem sido foco de interesse direto desse governo. Primeiro para entregar os territórios indígenas para a mineração e depois para satisfazer o desejo da Bancada Ruralista de avanço do agronegócio nos territórios indígenas, principalmente para soja e milho, além de grandes projetos como hidrelétricas”, completa Ângela Kaxyuana .
A porta-voz da campanha de Políticas Públicas do Greenpeace, Luiza Lima, avalia que as três demissões trazem uma mensagem clara de que “quem está ao lado da proteção da floresta é o punido, e o criminoso é o beneficiado”. “Essa é uma lógica que tem imperado no Governo Bolsonaro, mas desde antes, ainda no período eleitoral, ele já sinalizava essa clara mensagem de que o crime teria não só vez, mas como também seria recompensado. O criminoso seria para quem o presidente iria governar”, diz.
Desmonte da fiscalização ambiental
Ao assumir o ministério do Meio Ambiente, Ricardo Salles proibiu que servidores do Ibama e também do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) de conceder entrevistas à imprensa. A secretária executiva da Ascema, Elisabeth Uema explica que os servidores federais estão sob mordaça. “Eles [Renê e Hugo] não podem falar; aliás, ninguém do Ibama pode falar por uma ingerência do ministro que proibiu, inclusive, a assessoria de comunicação do Ibama de falar diretamente com a imprensa, quanto mais os servidores, que podem ser penalizados se falarem. Estamos fazendo o papel de porta-vozes para que eles não sejam penalizados. Não é bom que eles falem, pois podem sofrer retaliações”, explica a secretária executiva da Ascema.
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, a política ambiental brasileira tem sido negligenciada e a Floresta Amazônia e as populações tradicionais têm sofrido sucessivos ataques de madeireiros, grileiros, garimpeiros e fazendeiros apoiadores do presidente. De 1o de janeiro de 2019, o governo retirou autonomia do Ibama e do ICMbio; flexibilizou e reduziu multas por crimes ambientais; transferiu o Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura, sob o comando da Bancada Ruralista; tentou emplacar o Projeto de Lei 191/2020, que regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas; se posicionou de maneira contrária ao Acordo de Paris; e praticamente acabou com o Fundo Amazônia.
“No último ano a gente pode ver como a política antiambiental do Governo Bolsonaro contribuiu para manchar a imagem brasileira perante diversos governos e mercados internacionais, isso ficou bastante evidente durante o período das queimadas e quando vieram os dados do desmatamento”, avalia a coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace, Luiza Lima.
Ela chama a atenção para a pressão internacional que Bolsonaro vem sofrendo desde então para adotar posturas que retomem as rédeas da proteção ao meio ambiente no país. “O governo brasileiro foi diversas vezes pressionado e chamado à proteção do seu próprio território com alertas de que esses governos internacionais não topariam comprar produtos brasileiros manchados de sangue e de destruição. Agora, podemos esperar repercussões na mesma linha, a própria OCDE vai emitir um comunicado denunciando as interferências do Bolsonaro em vários cargos que seriam a linha de frente de investigações e também cita da política antiambiental de desproteção da Amazônia que está sendo levada a cabo pelo seu ministro [do meio ambiente]”, acrescenta Luiza.
“Tudo isso gera repercussões que são muito ruins para o país. Nós não precisamos, de forma alguma de um presidente que jogue contra a imagem do nosso país internacionalmente, e nem contra a própria população, que é o que temos assistido de forma lamentável”, conclui ela.
A secretaria-executiva da Ascema chama a atenção para medidas que tramitam no Congresso Nacional como medidas provisórias e projetos de lei que afetam a área ambiental. “A MP 910/2019, que chamamos, justificadamente, de Medida Provisória da Grilagem, que é a que legaliza terras onde ocorreu desmatamentos ilegais e invasões, nossa sensação é que isso incentiva a invasão de terras indígenas, por garimpos e outras ações. Isso é grave porque altera tudo o que nós conhecemos como meio ambiente hoje”, diz. A medida quer permitir que terras públicas sem destinação, com até 2.500 hectares, se tornem propriedade de quem as ocupou, mesmo que irregularmente. A mudança, em vigor desde 10 de janeiro, tem de ser votada em até 120 dias a partir da publicação para não perder a validade.
Alta no desmatamento
O desmatamento na Amazônia cresceu 279% em março de 2020, em comparação com o mesmo mês do ano passado. A informação é do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). De acordo com o monitoramento, a floresta perdeu 254 km² de vegetação. Os números são os mais altos dos últimos dois anos e podem estar ligados ao avanço de áreas ilegais de garimpo e ainda à intensa atuação de grileiros.
O Amazonas foi o estado que liderou o ranking do desmatamento no período. A última vez que isso aconteceu foi em junho de 2019. Em seguida vem Pará, Mato Grosso, Roraima, Rondônia e Acre. O município que registrou a maior área devastada foi Apuí, no Amazonas. A lista segue com Rorainópolis, em Roraima, e São Félix do Xingu, no Pará, também nas primeiras colocações.
O município de Apuí foi apontado como a maior e mais preocupante frente de desmatamento no Amazonas por Hugo Loss em entrevista à agência Amazônia Real em outubro de 2019. “Apuí é a principal frente de desmatamento no sul do Amazonas, mas a nossa atuação local, durante este ano, com certeza foi importante para que a situação não fosse ainda mais grave. A questão é que, hoje, conseguimos mobilizar, no máximo, duas equipes no município para não desguarnecer outras frentes de combate ao desmatamento. No contexto atual, quando precisamos de mais gente em determinado lugar, temos que retirar pessoas de outro local”, disse à época.
No acumulado do calendário do desmatamento, de agosto de 2019 a março de 2020, os índices de devastação da floresta também registram aumento de 72% em comparação com o mesmo período do calendário anterior. O índice de desmatamento em Terras Indígenas também aumentou. As TI’s que mais perderam área de floresta foram TI Yanomami (AM/RR), Alto Rio Negro (AM) e Évare I (AM).
MPF quer medidas contra Covid-19
Diante do cenário, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou à Justiça Federal no último dia 24 um pedido de tutela antecipada “para que o governo federal promova imediatamente medidas de comando e controle para a prevenção do desmatamento em pelo menos dez áreas de maior incidência do crime na Amazônia”.
O pedido, que tramita na 7ª Vara Federal no Amazonas, também determina que União, Ibama, ICMBio e Funai implantem bases fixas na tríplice fronteira entre o sul do Acre, norte de Rondônia e sul do Amazonas (Amacro); no norte do Mato Grosso nas fronteiras com o sul do Amazonas e com o Pará; e no estado do Pará, nas regiões das rodovias federais BR-163, BR-230 e BR-158. Os órgãos devem atuar em articulação para conter a ação de madeireiros, garimpeiros e grileiros.
Segundo o MPF, os envolvidos têm cinco dias, a partir do recebimento da notificação, para apresentar um planejamento e cronograma de ações, com previsão de estruturação das bases com efetivo suficiente e recursos materiais necessários ao combate do desmatamento. A ação pede que o plano seja imediatamente implementado após a apresentação, enquanto perdurar a pandemia de Covid-19.
O primeiro indígena vítima do coronavírus, classificado como aldeado, foi um jovem do povo Yanomami, de 15 anos, em 9 de abril, em Roraima, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. A Terra Indígena Yanomami está invadida por mais de 20.000 garimpeiros, como denunciou o líder Davi Kopenawa Yanomami, em 2019. A suspeita é a de que o jovem foi contaminado por garimpeiro em Alto Alegre, região do rio Uraricoera, onde o transito de invasores é intenso. Até o momento o governo de Jair Bolsonaro não realizou uma ação para fechar os garimpeiros no território, como pediu judicialmente o MPF.
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