Por Bruna Rocha
Existem muitos argumentos que já deveriam ter encerrado o assunto do Marco Temporal. Dados arqueológicos proporcionam mais alguns.
O 4˚ inciso do Artigo 16 do PL 490 declara que “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” poderá abrir-se espaço para a perda da terra pelos indígenas. Ou seja, exige-se que os indígenas vivam estáticos, conforme uma imagem estereotipada e distorcida, reciclando argumentos cunhados ainda no século 19. Os povos indígenas americanos nunca viveram congelados, sem mudar: ao longo de pelo menos 12 mil anos, protagonizaram uma série de transformações.
Eles manejaram o ambiente e domesticaram dezenas de plantas alimentícias e medicinais – muitas são fundamentais para a alimentação no Brasil e no mundo hoje – como variedades de batata, mandioca, milho, abacaxi, feijão, pimenta, dentre muitas outras. Conseguiram fazer isso, pasmem, sem secar o cerrado ou desflorestar a Amazônia. Ao contrário: transformaram a natureza, tornando-a mais fértil, como é evidenciado pelas terras pretas de índio: estes solos antrópicos amazônicos são muito mais propícios à agricultura em comparação aos solos naturais da região.
Lograram, ainda, desencadear inovações tecnológicas como a cerâmica – este material sintético, o primeiro produzido pela humanidade e criado de forma independente em diferentes pontos no mundo (como na Europa Oriental e na China), revolucionou nossos hábitos alimentares e possibilidades de absorção de nutrientes (até então, as alternativas eram grelhar a comida ou esquentar recipientes feitos de pedra ou de materiais vegetais de forma indireta). As cerâmicas mais antigas das Américas foram localizadas no baixo rio Amazonas, e datam entre 7 e 8 mil anos atrás.

Ao longo dos milênios, seus números aumentaram de forma expressiva. Estimativas demográficas para as Terras Baixas da América do Sul calculam algo entre 10 milhões de pessoas em 1492, data da chegada de Colombo nas Antilhas. À época, sua qualidade de vida provavelmente era superior à dos europeus. Havia cidades aqui – Santarém, no Pará, já era uma cidade indígena antes da invasão europeia das Américas, ostentando hoje mil anos de ocupação contínua.
A partir da invasão europeia das Américas, calcula-se que de cada 10 pessoas, 9 teriam morrido um século e meio depois: pesquisas, inclusive, mostram que a maior mortandade da história chegou a levar a um esfriamento mundial. Com sangue e suor os povos indígenas (e depois, africanos) construíram o Brasil, mudaram o nosso português, nos legaram paisagens antropizadas que permitem ao país ser a maior potência ambiental do planeta hoje.
Não deveria ser preciso expor essas informações com relação a esta discussão. Bastava ouvir o que dizem os próprios povos indígenas hoje, Ou mesmo ler o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado há 10 anos. O documento abrange o período entre 1946 e 1988, e detalha uma série de casos de genocídio, esbulho territorial e outras graves violações perpetradas pelo aparato estatal ou com a conivência do Estado, como é o caso do que aconteceu com os Waimiri-Atroari.

A aldeia Munduruku de Sawré Muybu, localizada no médio Tapajós (PA), está situada sobre um sítio arqueológico com Terra Preta, datado por volta do ano 1000 d.C. É possível perceber o contraste entre a terra preta e o solo natural, localizado abaixo, de cor amarelada (Foto: Bruna Rocha) .
É especialmente perverso buscar estabelecer o ano de 1988 como “marco temporal” a definir o direito dos povos indígenas às suas terras. A única brecha aberta no texto que prevê reocupação de territórios indígenas pós-1988 é dada no caso de os indígenas poderem comprovar existirem, em 1988, litígios em andamento que demonstrem um conflito pela terra. É simplesmente absurdo supor que, após décadas de opressão pelo regime de tutela capitaneado desde 1910 pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, a partir de 1968, pela Fundação Nacional do Índio [renomeada para Fundação dos Povos Indígenas em 2023], indígenas teriam iguais condições de adentrar conflitos possessórios pelas suas terras. Afinal, eram tutelados pelo Estado e sequer poderiam mover uma ação legal. Ademais, durante o regime militar (1964-1985), a própria Funai emitia certidões negativas, que declaravam não haver indígenas ocupando seus territórios para abrir caminho para a instalação de empresas em diversas partes do país.

A imagem que abre este artigo mostra material arqueológico encontrado na comunidade indígena Urucurituba, do povo Mura, às margens do rio Madeira, no município de Autazes, Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Este texto foi escrito por Bruna Rocha com exclusividade para a Amazônia Real.
Bruna Rocha é professora de Arqueologia na Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém. Investigou a arqueologia regional do alto rio Tapajós em seu mestrado e doutorado, realizados na University College London, na Inglaterra.
Fonte: https://amazoniareal.com.br/marco-temporal-a-arqueologia-tambem-diz-nao/
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