Boa Vista (RR) – O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), órgão das Organizações das Nações Unidas (ONU), estima quase 10 mil crianças e adolescentes venezuelanos atravessaram desde 2017, acompanhados ou não dos pais, à fronteira do Brasil pela cidade de Pacaraima, em Roraima. O destino deles é a capital Boa Vista.

Segundo a Defensoria Pública da União (DPU), que tem um posto na fronteira brasileira, os meninos e as meninas se deslocam em busca de emprego para sustentar os parentes que ficaram no seu país, pois muitos são órfãos de pais.

A DPU diz que, de maio a novembro do ano passado, das 529 crianças e adolescentes que ingressaram na fronteira brasileira, 90% tinham idades entre 13 e 17 anos. Desse total, 41% estavam desacompanhados dos pais, e 59% viajaram com adultos, que não eram parentes ou responsáveis. As meninas somam 60% dos migrantes.

Nas ruas do centro de Boa Vista é comum encontrar crianças e adolescentes venezuelanos, desacompanhados dos pais, pedindo dinheiro aos motoristas nos semáforos.  Sem os pais, eles não podem procurar o serviço público. Nas ruas, estão sujeitos à violência.

Quando eles são abordados por alguém desconhecido ficam assustados, pois temem policiais e conselheiros tutelares, responsáveis por retirá-los das ruas onde ficam em alta vulnerabilidade. Foi o que aconteceu com a reportagem da Amazônia Real, que vem monitorando a presença de meninos migrantes nas ruas do centro da cidade desde o início desde ano, antes do início da pandemia do coronavírus. O primeiro caso da doença Covid-19 foi registrado no dia 22 de março, em Roraima.

Nas ruas de Boa Vista, a reportagem encontrou A.D., de 10 anos de idade. Com as roupas sujas, ele estava sentado em uma mureta. No início da abordagem, ele resistiu a responder perguntas desta jornalista. Devolvia pedrinhas do chão a cada pergunta feita, como um mecanismo de defesa.

Foi quase em um sussurro que o garoto revelou seus dois primeiros nomes e idade – que estão em sigilo nesta reportagem em respeito ao Estatuto da Crianças e do Adolescente. A.D. contou que era a primeira vez que estava naquela esquina.

Disse que parou de ir à turma do 2º ano primário da escola porque faltou dinheiro para comer em sua casa. Daí ele passou a pedir esmolas para comprar comida, o que “às vezes conseguimos”, diz.

O menino é da cidade venezuelana de El Tigre e veio ao Brasil em viagem de ônibus, acompanhado da mãe, que teria 40 anos de idade, diz ele. “Era bem melhor na Venezuela; a gente tinha uma casa lá e a minha mãe trabalhava, como faxineira”, conta.

No primeiro momento, A.D. disse que sua mãe estava por perto, pedindo dinheiro em um sinal de trânsito. Mas a reportagem não encontrou nenhum parente do garoto. Perguntando como era a vida na rua, ele disse: “não tenho medo de ficar nas ruas”, revelando sua condição.

Outro menino que conversou com a reportagem foi R.R, de 10 anos. Ele contou que dorme junto com a família em uma barraca, que é montada e desmontada todos os dias próximo à Rodoviária Internacional de Boa Vista.

R.R. contou que passa o dia em frente à rodoviária guardando os carros, mesmo durante os finais de semana, em troca de dinheiro, que ele guarda para comprar comida.

Há um ano na cidade de Boa Vista, ele revelou – quando se sentiu mais à vontade com a equipe de reportagem – que seus pais ficaram na Venezuela. Isto é, está sozinho em Roraima. “Cheguei aqui com amigos”, disse o garoto, que não contou como atravessou a fronteira sem a companhia dos pais.

O gás lacrimogênio

Crianças venezuelana desacompanhada dos pais nas ruas de Boa Vista
(Foto: Yolanda Mêna/Amazônia Real)

As crianças e adolescentes venezuelanos que migram desacompanhadas para o Brasil estão muito mais suscetíveis à violência. Na entrada de um supermercado bem movimentado na região central da capital roraimense, vários meninas e meninas aguardam por alguma doação de alimento ou comida, principalmente ao longo da manhã.

O guardador dos carros, o venezuelano William Raymondi, de 48 anos, afirma que mora em Boa Vista há quatro anos. Ele conta que sempre encontra crianças e adolescentes nas ruas, em diferentes situações: “sentadas junto com seus pais em papelões, ou brincando; pedindo esmolas sob a vista grossa dos familiares; ou então desacompanhados”.

À Amazônia Real, William revelou que presenciou a agressão de um vigia do supermercado contra crianças. Ele disse que elas esperavam um cliente, que havia prometido comprar comida para elas, mas o vigia os expulsou do lugar.

“Depois que o cliente saiu, o vigia veio atrás gritando para eles saírem de perto. Como eles não saíram, o homem usou um aparelho de choque em um deles, jogou um copo de plástico com café quente na sua direção e ainda deu um soco de mão fechada em um. Houve confusão, choro. Já aconteceu de crianças roubarem o supermercado e o vigia jogar gás lacrimogêneo nos olhos deles”, denunciou.

O acolhimento infanto-juvenil

Migrantes continuam nas ruas durante a pandemia do coronavírus
(Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Desde o ano de 2014, as autoridades da imigração brasileira registram a entrada de venezuelanos pela fronteira de Roraima. Eles buscam refúgio, alimentos, medicamentos e uma vida melhor após a intensificação da crise política e econômica no país vizinho.

Na fronteira da cidade venezuelana de Santa Elena do Uairén eles atravessam para a brasileira Pacaraima, distante a mais de 200 quilômetros de Boa Vista. Leia a série Migrante cidadão.

Para as crianças e adolescentes desacompanhados dos pais, o procedimento ideal, após passarem pelo posto da Defensoria Pública da União (DPU) na fronteira, seria o encaminhamento para abrigos específicos para essa faixa etária – em Roraima são dois para adolescentes e um para crianças, cada um com capacidade para 20 pessoas, segundo o Governo do Estado.

Na prática, esses locais já não suportam o fluxo migratório (somado à própria demanda brasileira) e as crianças e adolescentes desacompanhados dividem espaço nos 13 abrigos para adultos, ou mesmo nas ruas de Pacaraima e Boa Vista.

O Governo do Estado alegou em nota que, dentro dos abrigos da Operação Acolhida, apenas 19 crianças e adolescentes vivem sem suas famílias, contra 2.839 que estão acompanhados, no mês de março deste ano.

No dia 13 de setembro do ano passado, um impasse entre um juiz estadual, que ordenou que os abrigos para crianças e adolescentes recusassem imigrantes recém-chegados, e a DPU, que alegou danos psicossociais para quem fica misturado a adultos que não conhece, gerou a necessidade de inauguração de casas lares e de melhoria dos abrigos já existentes.

Assim, o Ministério da Cidadania, que gerencia a Operação Acolhida, firmou parceria com o Governo do Estado de Roraima, a ONG Aldeias Infantis SOS Brasil (que já tem projetos com migrantes venezuelanos na Colômbia) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para que, em Boa Vista existisse uma Casa Lar e, em Pacaraima, uma Casa de Passagem.

As inaugurações das casas foram respectivamente nos dias 18 e 20 de dezembro de 2019. Cada uma tem capacidade de atendimento de até dez pessoas entre 0 e 18 anos de idade sob medida protetiva, por enquanto apenas oriundas da Venezuela.

O mobiliário das casas foi cedido pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM).

A Casa de Passagem, em Pacaraima, será para o acolhimento inicial e os casos que irão para Boa Vista são os que precisarão de mais tempo e apoio para serem solucionados.

A sua gestão ficou a cargo da Aldeias Infantis, do Departamento de Proteção Social Especial (DPSE) e da Secretaria de Estado do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes). O Governo do Estado afirmou que “o objetivo é a busca ativa pela reintegração familiar ou de uma família substituta”, por meio do acompanhamento de psicólogos e assistentes sociais, que farão o possível para que a rotina deles seja próxima à de um dia a dia em um lar.

Porém, o projeto é financiado pelo UNICEF e pela Aldeias Infantis durante apenas os seis meses iniciais, ficando a dúvida se haverá continuidade desse acolhimento após este período. Questionado a respeito do funcionamento da casa, o UNICEF não respondeu até o fechamento desta matéria.

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Boa Vista afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que das 24 crianças estão vivendo no abrigo infantil municipal, seis delas são brasileiras, filhas de mães venezuelanas; uma é venezuelana; e duas são haitianas.

As crianças e adolescentes venezuelanos que vivem na capital com suas famílias foram 11,6% das crianças matriculadas na rede municipal no ano passado (4.866). Por causa da pandemia do novo coronavírus, as escolas estão com as atividades suspensas.

Nos postos de saúde, 1.300 refugiadas com filhos entre 0 e 6 anos de idade foram acompanhadas pelo programa social municipal Família Que Acolhe.

A Prefeitura mencionou até mesmo a orientação em espanhol e português nos parquinhos e praças “como forma de aumentar a inclusão social neste contexto atual”, e ressaltou que “se eles entram sozinhos pela fronteira, é competência de o Governo Federal ampliar a fiscalização nesta área, da Operação Acolhida criar uma estratégia de recebimento, do município de Pacaraima e do Governo do Estado para evitar essa irregularidade, tudo sob o aspecto humanitário”.

“Minha mãe está na cabana”

Crianças venezuelanas estão vulneráveis na capital de Roraima
(Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Na Rodoviária de Boa Vista, a reportagem ainda encontrou também A.B., de 11 anos. No braço esquerdo, ele tem uma pulseira da Organização Internacional para as Migrações (OIM), o que indica que foi acolhido em um abrigo.

Sorridente e falante, ele contou que viajou ao Brasil na companhia dos pais e que a família era do Estado de Sucre. Estão vivendo na capital de Roraima há três meses, diz o menino.

A.B. fala com entusiasmo que, em breve, irá viajar com seus pais para Curitiba, capital do Paraná. Segundo ele, a família será “interiorizada”, termo usado pelo governo federal para transferir migrantes venezuelanos de Roraima para outros estados do país.

“Vai ser minha primeira vez de avião, e já vi foto da cidade e gostei, é muito bonita. Vou estudar lá”, contou, empolgado.

A.B. disse que conheceu R.R. na rodoviária, guardando carros. “As pessoas me tratam bem aqui, mas algumas falam coisas ruins, palavrões que não posso reproduzir. Eu me sinto mal quando elas fazem isso”, disse o menino.

Perguntando onde estavam os seus pais, ele desconversa: “minha mãe está na cabana agora, com meu pai”.

No dia 7 de abril, a repórter Nayra Wladimila fez seu último monitoramento nas ruas de Boa Vista, antes de entrar na quarentena voluntária de prevenção contra o coronavírus. Neste dia, ela disse que observou crianças e adolescentes nos semáforos do centro da cidade.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/meninos-venezuelanos-contam-como-e-migrar-para-o-brasil-desacompanhados-dos-pais/

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