Por Elaíze Farias e Cícero Pedrosa Neto, da Amazônia Real
Manaus (AM) e Belém (PA) – Um grupo de 12 indígenas (cinco mulheres, quatro homens e três crianças) do povo Kanamari foi ameaçado por três pescadores ilegais armados próximo da Base da Frente de Proteção do Itacoaí-Ituí, na Terra Indígena Vale do Javari (Amazonas), no dia 9 deste mês, por volta de 9h30. Uma mulher Kanamari teve uma espingarda apontada na direção de seu peito por um dos pescadores, que ameaçou matá-la. Sem arma, os outros indígenas temeram por uma tragédia e tentaram convencê-los a desistir do crime.
Os três pescadores então se afastaram, levando em suas embarcações dezenas de tracajás (quelônios da Amazônia) retirados da terra indígena. De longe, eles atiraram cinco vezes no tambor de combustível (já vazio) do “canoão” no qual os indígenas viajavam.
Em relato concedido com exclusividade à Amazônia Real, a indígena ameaçada pelo pescador ilegal disse que só não morreu porque havia várias testemunhas no “canoão”, embarcação típica da região do Vale do Javari. Ela lembra as palavras exatas que o pescador lhe disse, enquanto apontava-lhe a arma:
“A frase que ele usou quando colocou a arma de fogo em mim foi: ‘‘você já estava na lista. Só que não tinha certeza, mas agora tenho certeza. A partir de agora, quando eu chegar em Atalaia você não vai escapar. Vamos te matar como aconteceu com o Bruno e o outro’. Ele me disse isso, na frente da minha filha pequena”, contou.
Para ela, que pediu para não ter seu nome divulgado nesta reportagem para preservar sua segurança e de sua família, o pescador só não atirou porque havia crianças e outras pessoas testemunhando.
A abordagem dos pescadores aconteceu durante uma parada do grupo de Kanamari para pescar em um lago chamado Volta do Bindá, no rio Itacoaí. O local é um ponto conhecido dos indígenas, quando eles interrompem a longa viagem para fazer suas refeições. Ele fica a seis horas de viagem (em embarcação pequena) da comunidade ribeirinha Cachoeira, onde foram mortos Bruno Pereira e Dom Phillips, e a uma hora em barco veloz.
O grupo havia saído da aldeia Massapê e já viajava há quatro dias, em um ‘canoão’ de 9HP, e ainda teria mais um dia e meio até chegar na cidade de Atalaia do Norte, na fronteira do Amazonas com o Peru.
“A gente parou na Volta do Bindá porque é um ponto onde a gente pega nosso almoço até seguir viagem. Encostamos o barco e os homens foram pro lago pescar. Enquanto isso, as mulheres ficaram fazendo fogo. Vinte minutos depois, um dos homens (Kanamari) voltou dizendo que encontrou os três pescadores que ofereceram tracajás para que a gente não falasse que eles estavam lá, pra gente não denunciar para a Funai”, conta a indígena Kanamari.
Segundo a indígena, a prática de oferecer tracajás, outros pescados ou carne de caça tem sido recorrente dentro da TI Vale do Javari, na tentativa de comprar o silêncio dos indígenas e intimidá-los para que não denunciem as invasões.
“Eles intimidam e falam: ‘a gente tem tracajá aqui, vamos dar pra vocês, para cada família’. Desta vez, não suportei ver aquela cena, eles intimidando meu povo. Fui na beira do lago e perguntei: ‘por que vocês estão fazendo isso?’, ‘por que estão invadindo (a terra indígena)’? Então pedi pro meu povo pegar os tracajás e jogar dentro na água. Foi quando eles colocaram a arma de fogo no meu seio e falaram que iam me matar. Falei que não tinha medo de morrer, que não tinha medo deles. Mas as pessoas que estavam comigo ficaram com medo, de tirarem minha vida sem eles poderem fazer nada”, conta.
Os três pescadores decidiram então sair do local em canoas carregadas de tracajás pescados ilegalmente, repetindo ameaças aos indígenas.
“A gente se acalmou e eles se afastaram. Na saída do ‘cano’ (pequeno caminho) do lago, eles deram cinco tiros no nosso tambor. Acabaram com o tambor, quiseram mostrar que mandam no local. Quando viram essa cena, as mulheres correram e foram pro barco. Eles saíram e ficamos no local porque os meninos (Kanamari) continuaram procurando nosso alimento”, disse.
Conforme a indígena, o grupo de 12 Kanamari continuou no lago, mesmo com o pavor da ameaça ocorrido minutos antes, porque precisavam aguardar outras três embarcações com indígenas que vinham atrás.
“A gente anda de ‘pec pec’ (outro nome do ‘canoão’) de velocidades diferentes. O que a gente estava era mais rápido. A gente sempre viaja junto e aguarda o que vem atrás. Chegamos primeiro para fazer o almoço e dividir com os parentes dos outros barcos. É assim que a gente viaja”, contou.
Medo de sair de casa
Os indígenas chegaram à Atalaia do Norte na quinta-feira (10) à noite e somente no final de semana as lideranças Kanamari começaram a reunir as informações para denunciar às autoridades.
“Estou em casa agora, mas com muito medo. Tudo o que aconteceu está na minha cabeça. Queremos denunciar o que aconteceu”, disse ela, que teme sair de sua residência.
Nesta quarta-feira (16) ela e outra liderança Kanamari foram à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal registrar denúncia e fazer o Boletim de Ocorrência. “A gente quer apoio das autoridades, da Funai, estamos com risco de morrer”, disse.
A indígena afirmou à Amazônia Real que conhece um dos pescadores que lhe ameaçou, mas ela não soube dizer se eles possuem relação com Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, que confessou ter atirado em Bruno Pereira e Dom Phillips.
O rio Itacoaí é a região que mais sofre com as invasões de pescadores ilegais dentro da Terra Indígena Vale do Javari. A maior parte das aldeias desta calha de rio é território dos indígenas do povo Kanamari, tais como as aldeias Massapê, Remansinho e Cajueiro, onde a liderança havia ido antes de retornar a Atalaia do Norte.
Desde os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho deste ano, pelo menos 11 indígenas do território estão ameaçados de morte e foram incluídos na lista de pedidos de proteção ao governo brasileiro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Um deles é Higson Dias Castelo Branco, do povo Kanamari, que está em situação mais vulnerável.
“Se o Higson estivesse na mesma embarcação que estávamos ele seria morto pelos pescadores, sem dúvida. Eles matariam na hora”, diz a indígena ameaçada.
Para ela, com o fim da repercussão dos assassinatos de Bruno e Dom, a Terra Indígena Vale do Javari voltou a ser invadida com mais força e com o agravante de que não há fiscalização alguma e nem ação policial para impedir os crimes ambientais.
“Vou te falar uma coisa. Não adiantou a gente fazer manifestação. Não adiantou trazer equipe grande [de autoridades] no auditório da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Foi tudo temporário. As invasões continuam”, desabafa.
Segundo ela, passados mais de cinco meses dos assassinatos de Bruno e Dom, a TI Vale do Javari voltou a ser invadida por pescadores e pouco se fala sobre os crimes, que continuam acontecendo.
Indígenas ouvidos pela Amazônia Real afirmam que a liberdade dada pela Justiça Federal no início de outubro a Rubens Villar Correa, conhecido como ‘Colômbia’, apontado por lideranças da TI Vale do Javari como o mandante dos assassinatos, deixou o clima na região tenso. A expectativa dos assassinatos também ganharem liberdade, antes do julgamento, causou angústia nos indígenas.
Segundo os indígenas, a Coordenação Regional da Funai em Atalaia do Norte já foi comunicada sobre a ameaça e ataque do último dia 9 no rio Itacoaí. Na manhã desta quarta-feira (16), um grupo de Kanamari se deslocou até o município de Tabatinga para denunciar o caso à Polícia Federal.
O deslocamento das lideranças até Tabatinga não contou com apoio nem da Funai e nem da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Os indígenas precisaram solicitar, de forma particular, proteção de um policial militar de Atalaia do Norte para fazer a segurança deles até a sede da PF.
Procurada pela reportagem, a CR da Funai em Atalaia do Norte respondeu que tomou conhecimento do ataque e informou a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Técnicos do órgão também foram ameaçados por pescadores nos últimos dias, segundo informou a coordenação.
A Funai em Brasília também foi procurada, mas o órgão ainda não respondeu.
“Se eu estivesse lá, teria morrido”
Higson Dias Castelo Branco é uma das onze pessoas mais ameaçadas no Vale do Javari, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em entrevista à Amazônia Real, ele contou ter certeza que se estivesse na embarcação que foi interceptada pelos pescadores ilegais no lago da Volta do Bindá, teria sido assassinado, como foram Bruno e Dom.
“Se eu estivesse lá, teria morrido. O mais perigoso é que eles conhecem a gente, mas a gente não sabe dizer quem são eles. Eu mesmo não sei identificar quem são esses pescadores que andam armados e invadem o nosso território”, disse o indígena. Higson foi uma das últimas pessoas a estar com a dupla assassinada no fatídico domingo de 5 junho deste ano.
Higson é figura central para entender os últimos acontecimentos que acabaram resultando nas mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips. Ele intergrava a equipe da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), capitaneada por Bruno, que foi ameaçada por Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, no amanhecer do sábado (4). Na ocasião, o grupo se deslocava até a base da Funai na TI Vale do Javari justamente para denunciar ao técnico responsável e pedir apoio à Força Nacional por conta presença de “Pelado” e outros pescadores ilegais flagrados por Bruno e a EVU na terra indígena.
Segundo relatos colhidos pelo Ministério Público Federal (MPF), “Pelado” estava acompanhado de mais dois homens familiares: Franciney Lopes Andrade e Eliclei Costa de Oliveira (o “Sirinha”) – respectivamente seu padrasto e seu irmão. Eles estavam em duas embarcações: “Pelado” e o irmão em uma balieira (lancha) equipada com um motor 60 HP, e Franciney em um barco de pesca de pequeno porte. Ao cruzar com a equipe no rio, “Pelado” e Eliclei teriam levantado espingardas e apontado-as em direção aos indígenas da EVU, Bruno e Dom. O MPF denunciou ambos por duplo homicídio e ocultação de cadáver.
Mesmo tendo seu nome citado na lista da CIDH, Higson Kanamari (como é mais conhecido) não se diz protegido e teme pela sua segurança.
“Nós estamos abandonados aqui. Não existe nenhuma proteção do Estado para as nossas aldeias, para o nosso território, e para a vida da gente. A gente se sente ameaçado dia e noite, com medo de morrer a qualquer momento do mesmo jeito que os nossos companheiros”, relata Higson, ressaltando os riscos diários enfrentados por ele, que vive próximo a alguns pescadores ilegais, em Atalaia do Norte.
O indígena Kanamari diz que, passados cinco meses dos assassinatos de Bruno e Dom, a sensação é que este episódio já ficou no esquecimento.
“Parece que as pessoas já se esqueceram dos criminosos que ameaçam a vida dos indígenas no Vale do Javari. Mas as coisas só estão piorando a cada dia que passa e a gente não vê ninguém fazendo nada pela gente. Eu posso ser o próximo”, alerta Higson.
A soltura de Colômbia
De acordo com Higson Kanamari, após a soltura de Rubens Villar Coelho, conhecido como “Colômbia”, os pescadores passaram a ficar mais “agressivos” e voltaram a invadir a TI Vale do Javari. “Essa foi a primeira vez, depois da morte do Bruno e do Dom, que um pescador teve coragem de chegar na gente assim”. Segundo Higson, era comum que os pescadores se escondessem quando notavam alguma embarcação que pudesse avistá-los pescando pirarucu e tracajá nos limites da TI Vale do Javari.
“A questão é que eles ‘cresceram’ depois que o Colômbia foi solto. Eles passaram a não temer mais a Funai, a Frente de Proteção e mesmo os indígenas que estão ali em trânsito”, atesta ele, se referindo à soltura daquele que, de acordo com denúncias da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), pode ter sido o mandante dos assassinatos de Bruno e Dom.
“Colômbia” é apontado pela Polícia Federal como chefe e financiador de uma quadrilha de pescadores ilegais que atuam nos limites da Terra Indígena Vale do Javari. Ele foi preso em flagrante por falsidade ideológica, no dia 8 de julho, em Tabatinga, na região do Alto Solimões (AM), cidade vizinha de Atalaia do Norte, e fronteira com a cidade de Letícia, na Colômbia, após ter comparecido voluntariamente à sede da PF no município e apresentado documentos falsos e divergentes aos policiais.
Mas, após três meses de detenção em regime fechado em um presídio na capital amazonense, Manaus, ele está em prisão domiciliar desde o dia 22 de outubro, por determinação do juiz Fabiano Verli, da Vara Federal de Tabatinga. O investigado foi solto depois de pagar fiança de R$ 15 mil e aceitar os termos impostos pelo juiz, de que ele usasse tornozeleira eletrônica e não se ausentasse da cidade de Manaus.
Outro indígena ouvido pela reportagem sob a condição de manter sua identidade preservada por temer por sua vida, acredita que “Colômbia” tenha voltado a operar o esquema de tráfico de pescados na região e incrementado a ação do grupo para reparar os prejuízos acumulados com o tempo em que ele esteve preso.
“Quem está vigiando ele agora [Colômbia]? Esses pescadores não agem sozinhos, alguém tem que fornecer armas, cartuchos, gasolina e barco para eles. E tudo isso custa dinheiro”, aponta a fonte.
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