O que ocorreu na reunião de 22 de abril expressa a agenda de fato, sobretudo, do núcleo ideológico do governo
Aqueles que não viram a íntegra da gravação da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 deveriam assistir e divulgá-la, para que a sociedade brasileira perceba que está sendo submetida à irracionalidade e à perda de sentido de tudo o que diz respeito ao ser humano, em especial dos pobres.
Com efeito, aquela reunião expressa o que de mais perverso acompanha nossa história: dizimação pelos colonizadores dos verdadeiros descobridores do Brasil, conhecidos hoje como povos indígenas; quase quatro séculos de escravidão, vendendo e comprando escravos como animais, inclusive tendo as mães negras como geradoras de escravos para serem vendidos a proprietários de fazendas e castrando os homens mais frágeis, como se faz com os animais que não se deseja que procriem; uma classe dominante anti-pátria, patrimonialista, clientelista, dissimuladora e que mantém seus privilégios com a violência de ditaduras e golpes.
A reunião demonstrou um ministério sem qualificação técnica, moral e ética. As quatro dezenas de palavrões proferidas, das quais três pelo chefe da nação, embora não tenham sido pronunciadas por todos, foram por eles consentidas. Nenhuma medida para uma efetiva vontade nacional e coletiva para salvar vidas, nenhum projeto para a nação. Quais foram, então, o sentido e o objetivo da reunião?
A sabedoria popular nos diz que “o diabo ensina a fazer a panela, mas não ensina a fazer a tampa”. Isto para dizer que as trapaças, cedo ou tarde, aparecerão. O vídeo da reunião ministerial é menos forte no que busca incriminar para efeitos jurídicos: a interferência do presidente onde não poderia interferir, embora a sequência dos fatos só deixe dúvida para incautos.
Um processo que será habilmente conduzido pelo malabarismo jurídico até seu arquivamento, se não houver forte pressão das instituições e da sociedade.
O mais assustador e escabroso, entretanto, é a maquinação coletiva daquela reunião contra: a vida, a natureza, a esfera pública, espaço único de garantia de direitos universais, os índios, as pequenas empresas e a juventude pobre. Destaco a coerência de alguns pontos que se ligam ao que tem sido a agenda do grupo ideológico do governo.
O primeiro aspecto é de que desde o início da pandemia, o presidente não só mostrou um frio e absoluto desprezo pelos efeitos devastadores da covid-19, mas uma atitude ostensiva de contrapor-se às recomendações científicas que a maioria, quase absoluta, de chefes de Estado e seus dois ministros da Saúde obedeceram. Estes, então, se viram constrangidos a pedir demissão para honrar seu juramento perante a sua profissão: cuidar de vidas.
A reunião se deu quando milhares de cadáveres eram empilhados e enterrados em valas comuns e médicos, enfermeiros, fisioterapeutas dando tudo de si — inclusive a própria vida. E qual era o foco da reunião? Proteger o presidente de sua suposta perseguição, a família e amigos.
E a mesma atitude continua no momento que escrevo este pequeno texto. Enquanto os dados mostram mais de 20 mil mortes e a projeção de até 80 mil até o fim de junho, o presidente sai para comer um sanduíche numa padaria e sobrevoar de helicóptero os fanáticos e idiotizados apoiadores aglomerados que vociferam o que ele quer ouvir.
O que ocorreu na reunião ministerial, todavia, expressa a agenda de fato, sobretudo, do núcleo ideológico do governo, do que busca combater e priorizar. A postura reiterada de que os índios teriam que se civilizar e que, portanto, não haveria o porquê de eles terem tantas terras improdutivas é a demanda dos grandes latifundiários que querem mais terra. Daí o sentido da fala do ministro da Educação, carregada de rancor, quando declara “odeio, odeio, odeio esse termo povo indígena”.
De forma explícita, essa agenda se completa por outro ministro do núcleo ideológico do governo, o ministro do Meio Ambiente. “O esforço nosso aqui, enquanto estamos num momento de tranquilidade de cobertura de imprensa porque só fala de covid, é ir passando a boiada (…). Agora é hora de reunir esforços para dar de baciada a simplificação regulatória”, disse.
Afinal, para que se preocupar com o que a ciência fala sobre aquecimento global num governo para quem a ciência atrapalha? Para que se preocupar com as lutas nacionais e internacionais que visam a preservação ambiental?
A ministra Damares, além de ameaçar governadores e prefeitos de prisão pós-pandemia, por entender que prender pessoas que não respeitaram o isolamento atentam contra os Direitos Humanos, volta com a cantilena dos seus valores e de seu grupo, tachando de palhaçada o Supremo Tribunal Federal (STF) ter pautado a questão do aborto.
Por fim, uma preocupação com os filhos dos quilombolas dentro dos seus valores. “Então, tudo que nós formos construir, nós vamos ter que ver, ministro, a questão dos valores. Nossos quilombos estão crescendo e os meninos estão nascendo nos quilombos e seus valores estão lá. Então, tudo vai ter que ver a questão dos valores.”
Por sua vez, o ministro da alquimia econômica fundamentalista, com rancor e metáforas que agradam ao chefe, dispara em várias direções. Em relação aos funcionários públicos: “É nessa confusão toda, todo mundo achando que tamo (sic) distraídos abraçam a gente rolam com a gente nós já botamos a granada no bolso do inimigo: dois anos sem aumento”.
Em seguida diz que, com isto, ganharam dinheiro para salvar as grandes empresas e vão ter prejuízo com as pequenas. Para o pós-pandemia, qual é a receita para a juventude pobre: oferecer trabalho na abertura de estradas etc., por 200 reais por mês.
E para entrar na sintonia fina da ameaça, dá a fórmula para seguir em relação ao Congresso Nacional. “Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisas, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles. E quando eles cruzam a linha a gente solta a mão e sai andando sozinho.”
Há outros aspectos tão ou mais graves não tratados aqui, como o de armar a população para que faça justiça com as próprias mãos. Do que abordamos, qual a síntese perversa: uma defesa incondicional do mercado, entendido como os interesses dos grupos poderosos que querem as terras indígenas e as grandes empresas e setor financeiro; privatizar, privatizar, privatizar, especialmente o Banco do Brasil; um ataque frontal ao Poder Judiciário e ao Parlamento, vistos como obstáculos; um total desprezo aos povos indígenas, quilombolas suas culturas, seus valores e seus direitos; abolição ou inanição da esfera pública, único espaço que pode garantir direitos universais; uma granada contra os servidores públicos congelando por dois anos seus salários; por fim, a interdição ao futuro da grande maioria dos jovens, aproximadamente 85%, que dependem da esfera pública, para quem o ministro Guedes lhes cobra trabalho “voluntário” abrindo estradas e com um pagamento de 200 reais por mês.
Esta postura com a juventude, filhas e filhos da classe trabalhadora, da cidade e do campo, encontra coerência com a cínica tese da meritocracia no plano salarial e no plano do direito universal à educação. Não poderia ser mais explicita, no teor da reunião de 22 de abril, a afirmação do ministro Weintraub, em meados do mês de maio, sobre Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): “Não é para atender injustiças sociais, é para selecionar os melhores”.
Entende-se, deste modo, a insistência para realizar o exame do ENEM, ignorando a pandemia e o acesso desigual à tecnologia digital da grande maioria dos jovens que frequentam a escola pública . Uma reunião, assim, que sacraliza a velha tese, de matriz fortemente racista e de traços de eugenia social, de que quem atrapalha o Brasil, no seu desenvolvimento, são os pobres, particularmente os índios, os negros.
*Gaudêncio Frigotto é filósofo e educador
Edição: Leandro Melito
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