A antropóloga Ana Elisa de Castro Freitas homenageia Nelson Xangrê, histórica liderança Kaingang falecida no dia 22 de julho, aos 74 anos
Tombou um pinheiro grosso
Nas matas do Capão Alto!
Um estrondo,
Um sobressalto!
Morreu o Nelson Xangrê!!
Tronco velho Kaingang
Das terras de Nonoai
Tinha a esperteza do gato
E a força dos ancestrais
Com a marca Kanhru kré
Foi o herói da estratégia
na luta contra os posseiros
Expulsou de Nonoai invasores, madeireiros
Sempre ao lado da floresta
Enfrentando os coloniais
Defendendo angico, cedro
Campinas e pinheirais
Houve um clarão na floresta
Com o tombo do Xangrê
Eu choro com a juventude,
Bebo o kiki com vocês
Mas já vejo na clareira
O despontar da ponteira
De um tronco velho,
outra vez.
No esforço da memória, trago reminiscências de rastros desse grande herói Kaingang do século XX (como reconhece o historiador Kaingang Danilo Braga).
Em 1979 o cineasta Zelito Viana lançou o filme “Terra dos Índios”. Com narração de Fernanda Montenegro, Zelito cobre um panorama da resistência indígena no Brasil e os impactos das frentes coloniais na vida indígena. Grandes nomes aparecem nesse filme, Marçal Tupã dá um depoimento marcante, poucos meses depois seria assassinado por fazendeiros em Mato Grosso! Dos 15:36 em diante, vemos o depoimento de Nelson Xangre e a narrativa da expulsão dos posseiros em Nonoai. Xangre revela a preocupação com o desmatamento, a organização do Conselho interno para a proteção da terra e das florestas e o compromisso com a volta do mato no coração do território Kaingang.
Dois anos mais tarde, em 1981, a antropóloga Ligia Simonian defendeu sua dissertação de mestrado no Museu Nacional/UFRJ, com o título Terra de Posseiros. Simonian esteve em trabalho de campo em Nonoai entre 1978 e 1979, acompanhou as filmagens de Terra dos Índios e teve várias situações de entrevista com Xangrê. Sua dissertação é imprescindível para quem pretende entender o pensamento e a perspectiva de liderança e estratégia de Xangrê no contexto da luta Kaingang em Nonoai. Há vários trechos de transcrição das falas de Xangrê nesse trabalho. Xangrê aparece em inúmeras outras pesquisas posteriores, cabendo citar os estudos de Ricardo Cid Fernandes, Rogério ReusReuso Gonçalves da Rosa, Ana Elisa de Castro Freitas, Luis Fernando Laroque e, especialmente, os estudos do historiador Kaingang Danilo Braga.
Em 2000, Nelson Xangrê foi decisivo na implantação das primeiras vagas para estudantes indígenas no ensino superior, criadas junto à UNIJUÍ, no noroeste do Rio Grande do Sul. Intelectuais imprescindíveis para a história contemporânea do pensamento Kaingang, tais como o historiador Danilo Braga, o enfermeiro Pedro Sales, a educadora Maria Inês de Freitas, o educador Bruno Ferreira, estão entre os primeiros universitários indígenas Kaingang, formados na UNIJUÍ e hoje mestres, doutores, educadores que contribuem para a escrita de narrativas a contrapelo das fábulas coloniais.
Em 2016 Nelson Xangrê esteve na UFPR, Setor Litoral, e falou para um auditório lotado de estudantes, professores, pesquisadores. Sua presença foi promovida pelos estudantes indígenas que cursavam graduação na UFPR e participavam do Grupo PET Litoral Indígena. Especialmente o enteado de Xangrê, Nei da Silva, egresso do curso de Educação Física na UFPR, e atualmente coordenador pedagógico na educação escolar indígena na TI Kondá, foi imprescindível para fazer a ponte entre Xangrê e a UFPR, no evento Análise Temporal dos Processos Socioambientais Vivenciados nas Terras Indígenas nas Últimas Décadas.
Em 2019, Nelson Xangre se despediu da juventude Kaingang com uma participação emblemática no VII Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, ocorrido na UFRGS, Porto Alegre. Seu recado não poderia ser mais claro: a força de Xangrê persistirá em suas sementes.
*Doutora em antropologia social e professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Litoral
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