A pesquisadora Cisnea Menezes Basílio, 41, na Serra de Curicuriari, em São Gabriel da Cachoeira (AM) – Arquivo pessoal

  • Pesquisadores tentam enaltecer tradição e superar obstáculos para permanecer na faculdade
  • Apesar de avanço nas políticas de inclusão, número de indígenas na pós ainda é baixo

Catarina Ferreira

São Paulo

Em universidades amazônicas, indígenas e quilombolas buscam valorizar conhecimentos tradicionais na vida acadêmica com pesquisas e projetos que aproximam a ciência das comunidades.

A trajetória desses estudantes, no entanto, segue marcada por dificuldades —como a resistência da comunidade acadêmica em aceitar esses conhecimentos na sala de aula e a permanência no curso.

Encontrar o equilíbrio entre a ciência acadêmica e os saberes tradicionais foi o desafio enfrentado por Cisnea Menezes Basílio, 41, que estudou a geologia de lugares sagrados para os povos umükori mahsã e yepamahsã, no município de São Gabriel da Cachoeira, a 850 km de Manaus.

Em sua pesquisa, ela trata da interação dos povos a que pertence com a diversidade de elementos geológicos que compõem a paisagem local, como o solo, as rochas e os rios.

Cisnea explica que essas paisagens são descritas como locais sagrados, e foi a partir das narrativas míticas que ela construiu a base metodológica do seu trabalho.

Para isso, ela precisou buscar referências de outros pesquisadores amazônidas, a maioria na área das ciências humanas, que fizeram um movimento parecido. “A geologia nos molda a um padrão de estudos que, sozinho, não servia para o que eu precisava.”

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Cisnea defendeu seu mestrado em 2024, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), mas sua trajetória acadêmica começou bem antes, em 2005. Na época, apesar de reconhecer a importância de ser uma mulher indígena na universidade, ela afirma não ter encontrado espaço e nem abertura para levar o conhecimento tradicional para sala de aula.

O trabalho para conciliar a geologia e a mítica de seu povo em uma dissertação foi exaustivo, afirma, mas essencial para que ela mostrasse como o conhecimento produzido em seu território dialoga, em pé de igualdade, com a ciência ocidental.

“Nossos saberes, antes desmerecidos, estão começando a ser reconhecidos.”

Embora o número de estudantes indígenas e de outras comunidades tradicionais tenha crescido, devido às ações afirmativas, o preconceito ainda se faz presente na rotina universitária.

“O corpo docente não está preparado para receber quem vem de outros modos de vida, de outras cosmopercepções”, afirma Almires Martins Machado, liderança guarani-terena e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Almires é o primeiro indígena a se tornar professor no curso de direito da instituição.

Quando esses estudantes escolhem desenvolver pesquisas baseadas em suas cosmologias e tradições, enfrentam resistência e dificuldade para encontrar orientadores.

Há docentes sensíveis e dispostos, mas são a exceção, diz. “O conhecimento que carregamos é visto como de segunda categoria, porque desafia o pensamento cartesiano dominante.”

Segundo o pesquisador, mesmo com a abertura de vagas reservadas e a presença, ainda que pequena, de alunos desses grupos na pós-graduação, as dificuldades financeiras e estruturais persistem e prejudicam o crescimento desses grupos na universidade.

“O caminho foi aberto, mas a permanência ainda é o ponto mais frágil.”

Como poucos permanecem no ensino superior, o número de pós-graduandos é ainda menor. Na modalidade stricto sensu, a presença de pesquisadores indígenas não cresceu nas últimas décadas.

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Em 2021, eles representavam 0,4% dos mestres e 0,3% dos doutores, segundo estudo divulgado pelo CCGE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), organização vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).

O levantamento Mestres e Doutores divulgado em 2024 analisou o perfil dos pós-graduados brasileiros entre 1996 e 2021 e revelou que não houve crescimento no percentual de titulados indígenas desde o início da apuração de dados.

O percentual de titulados pretos e pardos mostrou um crescimento no período. Em 1996, 14% dos mestres eram pardos e 3% pretos; em 2021, o número passa para 27% e 8% respectivamente.

No doutorado, em 1996, pardos eram 10% e pretos 2% do total, já em 2021, os números passam a 23% e 6%. Brancos são maioria em todo o período (69% dos doutores e 63% dos mestres titulados em 2021).

Iluany da Silva Costa, 29, é doutoranda em ecologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), no campus de Altamira. Criada na comunidade quilombola Vila São Luís, em Mocajuba, a 240 km da capital paraense, ela enfrentou os desafios da permanência estudantil no dia a dia.

Longe da família desde 2017, quando entrou na graduação em biologia, ela passou por dificuldades financeiras e emocionais, superadas com apoio de colegas e também de uma bolsa que recebeu a partir do segundo ano.

“Vi a evasão de perto com pessoas da minha comunidade que vieram e não permaneceram.”

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Em sua pesquisa ela analisa os efeitos das atividades humanas sobre insetos aquáticos. Iluany também participa de um projeto de divulgação científica no Laboratório de Ecologia de Insetos Aquáticos do Xingu, que faz ações para aproximar os conhecimentos científicos de escolas e comunidades de Altamira.

Assim como Cisnea, da Ufam, a jovem conta ter aprendido a valorizar os conhecimentos que traz de suas raízes quilombolas e “não pensar que o que vem de fora é superior”.

Hoje, ao ver quilombolas ingressando no ensino superior, ela se sente parte de uma transformação em andamento. “A gente vê quilombola que é professor, doutor, estamos chegando em todas as profissões e pensar que isso é possível me deixa feliz.”

Fonte: https://ruf.folha.uol.com.br/2025/noticias/integrar-valores-tradicionais-a-vida-academica-desafia-indigenas-e-quilombolas.shtml