A médica indígena Adana Omágua Kambeba nas ruínas de Paricatuba, na região metropolitana de Manaus; ela mistura os saberes de sua comunidade com os da medicina ocidental em sua prática – Foto: Michael Dantas/Folhapress
- Adana Omágua Kambeba voltou para seu povo logo após se formar na UFMG
- Com abordagem holística, ela segue rituais rigorosos para se tornar também líder espiritual
São Paulo
Já em um dos primeiros dias de aulas na faculdade de medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), uma das melhores do país, Adana Omágua Kambeba, indígena amazônica pioneira formada pelo curso, sentiu que tinha objetivos diferentes de seus colegas.
Ela não estava ali por status ou para escalar socialmente. Ela tinha recebido sinais, ainda na infância, para se formar médica e, em seguida, voltar para ajudar na saúde de seu povo, espalhado em aldeias na floresta.
O tempo de graduação de Adana foi mais longo do que o da maioria dos alunos. Em vez dos tradicionais seis anos de estudo, ela se formou em nove.
“Precisei entrar num acordo com o modelo de ensino médico, com meus valores culturais e com meu ritmo. Dentro da cultura indígena, aprendemos com a mãe natureza a respeitar o tempo, principalmente o nosso tempo interno, seguir o meu ritmo”, diz ela.
Para a médica, que se dedica principalmente aos cuidados de saúde de mulheres, de crianças e de anciãos em comunidades dos omaguá, também conhecido como kambeba —povo das águas—, ter seguido a lição ancestral durante sua formação pode ter sido um fator de proteção para não ter adoecido mentalmente.
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Ao mesmo tempo em que se habilitava para a prática da medicina ocidental, Adana iniciou uma jornada longa com vista a se tornar líder espiritual de sua comunidade. Para isso, ela passa ainda hoje por rituais rigorosos de restrições alimentares, comportamentais e de isolamento na floresta.
As dietas, que envolvem severas limitações, por exemplo, do consumo de açúcar, frituras e bebidas alcoólicas, podem durar mais de um ano e passam pelo acompanhamento de pajés, curandeiros ou xamãs indígenas.
“As dietas ensinam muito sobre ética, disciplina e transcendentalidade. Me fortalecem para continuar executando ação social, étnico-cultural, identitária e espiritual que venho fazendo nas aldeias e associações do meu povo.”
A aprovação para a função depende ainda da “prova do grau”, última cerimônia de preparação, que envolve a bebida ayahuasca, parte da cultura dos omágua kambeba. Antes disso, ela precisa percorrer as cerca de 40 aldeias brasileiras da etnia e ser aceita por todas.
Sou uma aprendiz de dois tipos de saberes. Procuro estudar e aprender com o intuito de executar ambas as medicinas com ética, porque assim como existe a ética médica, também existe a ética xamânicaAdana Omágua Kambeba
médica
“Sou uma aprendiz de dois tipos de saberes. Procuro estudar e aprender com o intuito de executar ambas as medicinas com ética, porque assim como existe a ética médica, também existe a ética xamânica. Exercer as duas medicinas dentro de um equilíbrio nem sempre é uma tarefa fácil, pois são dois sistemas diferentes, mas que podem se encontrar para dialogar e tratar a saúde humana com uma abordagem mais holística.”
De acordo com a médica, é tênue a prática que separa e interliga os conhecimentos médicos indígenas e ocidentais, mas que é preciso muito cuidado e bom senso para não haver risco de enquadramento em charlatanismo e curandeirismo, que são crimes.
“Ao mesmo tempo precisa se ter respeito com o sentimento, fé e cultura alheias. Estamos falando de algo bem complexo que requer muita diplomacia e confluência entre os saberes.”
Segundo o Instituto Socioambiental, os kambebas foram um dos mais importantes grupos indígenas do Alto Amazonas, estabelecendo seu domínio principalmente na várzea do rio Solimões por uma extensão de mais de 700 km no século 17. A etnia era destacada por sua organização social.
O grupo viveu intensa violência na colonização e escravidão e perdeu população por guerras e epidemias, o que fez adotar o silêncio como estratégia de defesa e resistência até a década de 1980.
Adana, na infância, morou em casa de palafita, estudou em escola de madeira e teve uma vida de muita pobreza. “Aos olhos dos outros, era difícil conquistar um sonho desta natureza, o de se tornar médica.”
“Durante minha trajetória foram surgindo professores, amigos e colegas que colaboraram para minha vitória. Sou extremamente grata. A sensação de estar formada e de estar exercendo a medicina seja atendendo pessoas indígenas ou não, nos mais diversos lugares, como na floresta e na cidade, é a sensação de que esta conquista não é só minha.”
Uma bandeira que Adana afirma que irá sempre carregar é a do respeito à cultura indígena com seus modos de tratamento e cura levando em conta conhecimentos ancestrais e aos espíritos da floresta.
“Sem que a ciência indígena venha ser subjugada pela lógica da ciência biomédica. Pensar na medicina indígena não apenas como uma alternativa, mas como uma medicina integradora que pode coexistir e somar com a medicina ocidental, atendendo a um modelo de cuidado mais amplo, mais plural e holístico.”
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/11/medica-indigena-equilibra-conhecimento-ocidental-e-ancestral-na-amazonia.shtml
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