Raimundinha Rodrigues de Sousa diz que sua comunidade está em risco por tanta fumaça inalada – BBC
Indígenas e moradores do Amazonas relatam os impactos em suas vidas de incêndios e seca recorde
Ione Wells
BBC News Brasil
“Se esses incêndios continuarem, nós, indígenas, vamos morrer.”
Raimundinha Rodrigues de Sousa comanda o serviço voluntário de bombeiros da comunidade indígena Caititu, na Amazônia.
Essas terras são protegidas, segundo a Constituição. Mas elas estão pegando fogo há mais de 15 dias.
Para o grupo de voluntários, essa luta parece pessoal.
“Agora, [o fogo] mata as plantas; daqui a pouco, seremos nós, porque inalamos muito [fumaça]”, lamenta ela.
“É um fogo muito agressivo, que mata tudo que vê em seu caminho.”
Seu pai, Ademar, conta que a fumaça constante lhe causou problemas respiratórios.
“Não consigo dormir por falta de ar. Isso me faz acordar, sinto como se estivesse me afogando”, diz ele.
A Amazônia tem atualmente a sua pior situação com incêndios florestais em duas décadas.
Mais de 62 mil km² já foram queimados este ano —uma área maior do que países como Sri Lanka e Costa Rica.
O mundo depende da Amazônia para absorver muito de seu carbono. E os incêndios fazem com que a região esteja emitindo, agora, quantidades recordes.
A maioria dos incêndios aqui é iniciada ilegalmente por pessoas, de acordo com cientistas, a Polícia Federal e o governo: madeireiros e garimpeiros que buscam explorar terras, ou fazendeiros transformando-as em pasto.
É muito mais raro que incêndios ocorram naturalmente nessa floresta tropical úmida.
Muitos incêndios invadem unidades de conservação e terras indígenas, seja por saírem acidentalmente do controle ou por tentativas deliberadas de tomar terras.
Raimundinha diz que, quando sua brigada chega ao local de um incêndio, eles geralmente encontram garrafas de gasolina e fósforos.
Enquanto ela fala, ela avista outra coluna de fumaça entre algumas árvores.
Ela tem certeza de que aquele fogo foi iniciado deliberadamente, pois o grupo de voluntários tinha acabado de apagar os incêndios ali e criado uma barreira natural para impedir que se espalhassem.
Sua equipe vai inspecionar o local. Conforme nos aproximamos, sentimos um cheiro marcante de fumaça.
A paisagem no caminho para o incêndio é como um cemitério de árvores, totalmente destruídas e enegrecidas.
A floresta tropical aqui mal merece seu nome. As árvores ainda de pé estão carbonizadas e deformadas como fósforos queimados. O chão está coberto de cinzas brancas, como os restos de um churrasco.
A equipe de Raimundinha tenta apagar as chamas com mangueiras presas a pequenos recipientes de plástico que usam como mochilas. A água é limitada, então eles precisam ser seletivos.
O problema é que, assim que um foco de incêndio é apagado, outro começa.
O cacique Zé Bajaga diz que a maioria desses incêndios são criminosos, provocados por pessoas que “não querem mais o bem-estar da humanidade ou da natureza”.
Ele culpa a falta de “humanidade”.
Nos últimos anos, o desmatamento diminuiu na Amazônia. Mas, apesar das tentativas de repressão por autoridades, a ilegalidade ainda é abundante, e a presença do Estado parece mínima.
Parte da Amazônia é de propriedade privada de indivíduos ou empresas.
Por lei, proprietários privados devem conservar 80% da floresta tropical em suas terras e podem intervir nos 20% restantes. Mas isso não é bem policiado.
Parte das terras é classificada como unidade de conversação, de propriedade do Estado, ou como reserva indígena.
Algumas terras, no entanto, não têm propriedade totalmente designada – não são de propriedade privada de ninguém, mas tampouco foram protegidas como unidade de conservação.
Essas áreas são particularmente vulneráveis a grilagens de terras. Em todos os lugares pelos quais você dirige ou sobrevoa no sul do Amazonas, são visíveis garimpos, madeireiros e fazendas.
Dorismar Luiz Baruffi, um produtor de soja baseado na cidade de Humaitá, no Amazonas, é dono de suas terras há muitos anos.
Ele é contra os incêndios, mas pode explicar por que a agricultura “explodiu” na Amazônia.
No cerne do argumento dele e de outros está a crença de que mais terras devem ser produtivas, não apenas protegidas.
“O crescimento populacional aumentou o plantio aqui. Comecei aqui porque a região é boa, chove bem aqui”, ele explica.
“Acredito que se você estiver trabalhando dentro da lei, não há problema. É um lugar que fornece alimentos. É um Estado que pode produzir muito. Acho que ainda há muita terra para ser cultivada aqui no Amazonas.”
O desmatamento é ruim para os agricultores. Quanto menos árvores houver, menos vapor de água será emitido para trazer chuva para suas plantações – para as quais alguns agricultores queimam terras para abrir espaço.
“Nos saímos mal este ano por causa da seca”, desabafa o agricultor.
Os incêndios podem ter sido iniciados principalmente por humanos, mas foram agravados pela pior seca do Brasil, que transformou a vegetação normalmente úmida em um barril de pólvora seca.
A seca fez os rios caírem para níveis historicamente baixos, e quase 60% do país está sob estresse por causa da seca.
Os rios, em alguns trechos, estão completamente áridos e lembram um deserto ressecado.
João Mendonça e sua comunidade vivem perto do rio.
Mas com o leito seco, eles não conseguem mais navegar, fazendo com que fiquem isolados de cidades e vilas próximas.
Todos os dias, ao amanhecer, eles agora devem andar até a cidade mais próxima para encher galões de água.
Aqui, botos podem ser vistos saindo do rio e araras-azuis voando.
No caminho para buscar água, João e seus companheiros de vilarejo levam galões nas costas, queimam os pés no leito seco do rio e ocasionalmente passam por animais mortos, como tartarugas.
Eles fazem essa jornada várias vezes ao dia em um calor escaldante.
“É a pior seca que já vi na minha vida”, diz João. “Trouxe muitas consequências… a ausência de comida na mesa dos ribeirinhos é uma delas. Os peixes acabaram.”
“Uma das maiores dificuldades é o acesso à cidade. Agora, o rio está seco. Tem idosos, pessoas com doenças crônicas que precisam fazer esse trajeto.”
Sandra Gomes Vieira, que tem uma doença renal, está entre os isolados.
“Antes, era mais fácil quando eu estava me sentindo mal. Meu marido me colocava em uma canoa que chegava na cidade. Agora, preciso andar na areia para chegar lá. Tem dias que não consigo fazer nada, preciso de pessoas para me carregar”, diz ela.
Uma de suas três filhas teve que abandonar a escola.
“Ela não está estudando porque não conseguiu andar naquela areia no calor. Ela se sentiu mal.”
A seca também está dificultando a subsistência.
“Vivemos de vender os produtos que cultivamos. Agora, meus produtos estão estragando. E não há como levá-los para a cidade”, diz Sandra.
O impacto desses incêndios e da seca na vida das pessoas no Amazonas é claro, mas a mensagem deles também é.
“Tem gente que nem liga para esse tipo de coisa”, diz Raimundinha Rodrigues de Sousa, que luta contra os incêndios todos os dias.
“Eles estão simplesmente fazendo isso sem pensar no amanhã. Mas para você viver na natureza, você deve cuidar dela.”
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