Se o novo coronavírus tem tirado o sono do homem branco, imagine o nosso. Os indígenas brasileiros não foram dizimados somente pela brutalidade do invasor, mas também por doenças que vieram nas caravelas. Quando atracaram aqui, éramos mais de 4 milhões; atualmente, restam somente cerca de 900 mil de nós.
Ao contrário dos europeus, que já haviam desenvolvido anticorpos, nossos antepassados não tinham nenhuma defesa contra a gripe, o sarampo, a varíola, a coqueluche, a tuberculose e outras moléstias. No caso da Covid-19, o perigo é ainda maior, pois a humanidade inteira está indefesa. O ianomâmi Alvanei Xirixan era muito jovem, tinha apenas 15 anos. E, diferentemente, das duas vítimas anteriores da doença, morava na floresta. Sua morte, no último dia 9, acendeu de vez o alerta para todos os povos indígenas brasileiros. Estamos mais vulneráveis do que nunca.
O pouco-caso dispensado por Jair Bolsonaro à pandemia vem deixando o mundo inteiro perplexo. Se a sua insensatez põe em risco a população brasileira em geral, para nós ela pode significar o extermínio. E temos razões para acreditar que sua atitude é proposital. O presidente construiu sua reputação política dirigindo ameaças e ofensas às minorias. Nós, povos indígenas, sempre estivemos entre seus alvos preferenciais, e os ianomâmis, povo de Alvanei Xirixan, são uma antiga obsessão. Seu primeiro ato como deputado federal, em seu segundo ano de mandato (em 1992), foi um projeto para revogar a homologação do seu território —hoje acossado pelo garimpo ilegal, que contamina os seus rios por mercúrio.
O sucateamento promovido por ele à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde e responsável pelo atendimento de mais de 765 mil pessoas, vem sendo denunciado por nós desde o ano passado.
Segundo o último censo do IBGE, 306 mil indígenas vivem na Amazônia. Há aldeias que ficam a cinco dias de barco do posto de saúde mais próximo. Sem o Sesai, ficam entregues à própria sorte. Bolsonaro ainda quer municipalizar este serviço essencial, que é federal, deixando-nos nas mãos de políticos locais, que nem sempre prezam por nossos direitos.
Na cultura indígena não existe o isolamento social: vivem até 15 pessoas sob o mesmo teto. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) preparou um plano emergencial para combater a Covid-19. Entre as recomendações está o isolamento comunitário. É preciso que o homem branco mantenha distância de nossas aldeias.
E ainda há os mais de cem povos isolados que vivem na região. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), existem 86 territórios com presença de grupos sem contato na Amazônia. Se ainda candidato prometeu não demarcar “nem um centímetro a mais” de terras indígenas, em agosto passado, já usando a faixa de presidente, Bolsonaro disse que “se eu fosse fazendeiro, nem vou falar o que eu faria”, referindo-se a indígenas e quilombolas. São palavras que servem de incentivo àqueles que invadem suas terras e que podem levar o coronavírus até eles.
Yanomamis isolados na Amazônia
Os alertas de desmatamento na Amazônia cresceram 29,9% no mês passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Março de 2020 registrou a segunda maior taxa para o mês nos últimos cinco anos, atrás apenas de 2018.
No início de mesmo mês, quando a Covid-19 ainda não dominava os noticiários, a liderança ianomâmi Davi Kopenawa já alertava para os riscos que corriam os povos isolados na Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra: “Eu não conheço as suas casas, assim como vocês também não conhecem. Eu só as vi do céu, do avião. Nunca os visitei a pé. Nunca nos falamos. É por isso que estou muito preocupado. Talvez em breve estarão exterminados”.
Culturas inteiras podem desaparecer. São povos que têm sua própria medicina, de onde pode vir até mesmo a cura para a Covid-19 e novas pandemias.
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