Em ‘Tom Vermelho do Verde’, autor lembra construção da rodovia BR-174, que matou pelo menos mil waimiri atroari

SÃO PAULO

Dois militares de alta patente conversam sobre a Amazônia. “É uma irresponsabilidade deixar tamanha área estratégica entregue à ociosidade dos índios, à cobiça dos aventureiros e ao risco de ser ocupada por estrangeiros”, afirma um deles.

Mais adiante, em tom triunfante, o outro fala “onde predomina a vida selvagem, a Revolução [assim mesmo, em letra maiúscula] levará a civilização”.

Embora soe atual e verossímil, o diálogo pertence à ficção. Em seu novo romance, “Tom Vermelho do Verde”, Frei Betto se dedica a embaralhar eventos históricos e lances da imaginação, como havia feito uma década atrás em “Minas do Ouro”, no qual narrou de modo bastante particular a história de Minas Gerais, seu estado natal.

No primeiro capítulo do livro, um general e um coronel discutem o projeto de construção da rodovia BR-174, também conhecida como Manaus-Boa Vista. A conversa entre os dois oficiais ocorria sob o governo de Costa e Silva —de 1967 a 1969—, período em que o termo soberania implicava, entre outras coisas, dominar a Amazônia a qualquer preço.

O novo livro remete a uma tragédia ainda pouco conhecida pelos brasileiros —a morte de pelo menos mil indígenas da etnia waimiri atroari em decorrência da abertura dessa estrada, cujas obras começaram em 1971. Até então, os kinjas —como se denominam os indígenas desse território, que se estende por Amazonas e Roraima— haviam tido raros contatos com os não indígenas.

Em 1998, Frei Betto leu “Massacre”, livro assinado pelo padre Silvano Sabatini e pelo jornalista Antonio Carlos Fon, que descrevem em pormenores como os waimiri atroaris tentaram deter o avanço das Forças Armadas, da Funai, a Fundação Nacional do Índio, e das missões religiosas. Esses grupos queriam limpar o caminho para a BR-174, mas não só —cobiçavam as áreas ricas em minérios, especialmente cassiterita e estanho.

A resistência pouco adiantou. Ao longo dos anos 1970, os indígenas acabaram sendo dizimados por tiros, por envenenamento ou por doenças.

“Fiquei muito impactado com o livro, nunca me esqueci dele. Em 2017, eu resolvi que transformaria aqueles relatos num romance”, conta o escritor, que também atua como assessor de movimentos sociais.

Tomada a decisão, ele se dedicou intensamente às pesquisas. Leu mais de 70 livros, de obras específicas sobre os kinjas a estudos sobre a enorme diversidade da flora na Amazônia. Também consultou diversos indigenistas.

“Eu achava que alguns segmentos da sociedade brasileira, como os sindicalistas e os movimentos estudantis, dos quais eu participei, tivessem sido os mais atingidos pela repressão da ditadura militar. Na verdade, não. Só essa nação indígena perdeu mais de 2.000 indivíduos com a abertura da BR-174. Foi mesmo um massacre“, diz o autor.

O propósito de Frei Betto, no entanto, jamais foi escrever uma longa reportagem ou uma análise detalhada sobre o tema, daí o seu cuidado com a carpintaria literária. “Reescrevi tudo pelo menos 20 vezes para tirar qualquer ranço ensaístico. Tentei escrever de modo que o leitor fosse mais levado pela emoção do que pela razão. Nesse sentido, a questão estética é fundamental”, afirma ele, autor de mais de 70 livros, entre obras ensaísticas, memórias, romances, crônicas e escritos para crianças e adolescentes.

Por causa do lançamento de “Tom Vermelho do Verde”, ele tem feito palestras em que discorre sobre os temas abordados no romance. O público que ouve Frei Betto tem aprendido com ele, mas o autor também leva algumas lições desses encontros.

“Todos sabem o que é a Transamazônica, mas quase ninguém conhece a BR-174. Além disso, pouca gente ouviu falar nos waimiri atroaris. É impressionante como os brasileiros desconhecem a Amazônia.”

Adultos e crianças brincam em um igarapé perto da aldeia Mynawa na terra índigena Waimiri Atroari; ao longo de sua história, os wamiri atroaris foram impactados pela construção da BR-174, pela hidrelétrica de Balbina, que inundou parte de seu território, e pela mineração, que tem poluído os rios – Lalo de Almeida – 17.set.2022/Folhapress

Nessas palestras, o escritor também costuma lamentar o que chama de “triste coincidência”. Quando começou as pesquisas para o livro, ele conta, “não tinha a menor ideia de que hoje a Amazônia estaria no foco das atenções nacionais e, sobretudo, internacionais. Há cumplicidade do governo atual com o desmatamento, com o garimpo ilegal, com ogrileiros“.

O autor espera que essa situação mude sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, de quem é amigo há mais de 40 anos.

“Tom Vermelho do Verde” não é o único livro de Frei Betto que chega às lojas neste ano. “Fiquei isolado durante a pandemia, e o trabalho rendeu bem”, diz ele, que também lança “Jesus Militante – Evangelho e Projeto Político no Reino de Deus”, pela editora Vozes, obra de teor ensaístico baseada no Evangelho de Marcos, e “O Estranho Dia de Zacarias”, pela editora Cortez, livro dedicado ao público infantil.

TOM VERMELHO DO VERDE

  • Preço R$ 60 (208 págs.); R$ 30 (ebook)
  • Autor Frei Betto
  • Editora Rocco

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/11/frei-betto-lanca-romance-historico-sobre-o-massacre-de-indigenas-na-ditadura.shtml

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