Donato Lopes da Paz (1923 – 2023) – Sônia da Silva Lorenz
Donato Lopes da Paz liderou a luta para expulsar uma multinacional francesa da TI Andirá-Marau, entre AM e PA
SÃO PAULO
A paz estava no nome e na filosofia do tuxaua-geral, líder dos indígenas Sateré Mawé que habitam o rio Andirá, entre o Amazonas e o Pará. Donato Lopes da Paz morreu aos 99 anos, na última segunda-feira (26), após passar a vida dedicado à proteção do lugar onde nasceu. Sua principal ferramenta de trabalho foi a palavra.
Ele estava no cerne da luta pela demarcação da terra indígena Andirá-Marau, uma das primeiras reservas delimitadas no Amazonas. Em julho de 1978, as lideranças da região —que à época estavam distribuídas em 49 aldeias— decidiram que era necessário dar um basta nas invasões constantes de madeireiros, e que o caminho para isso era exigir do governo federal a declaração de posse.
Donato e outro líder indígena, Emílio Tibúrcio, conduziram o processo e viajaram a Manaus e a Brasília várias vezes até que a demarcação fosse concluída. Foram oito anos marcados por brigas com nomes da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e constantes invasões.
“Eu ficava muito impressionada com a força deles”, diz a antropóloga Sônia da Silva Lorenz, que viveu na terra indígena e participou do processo de demarcação, sobre Donato e Emílio. “Eles davam murro na mesa em reunião com o delegado da Funai e com o presidente da Funai e não tinha discussão. Diziam: ‘Mande imediatamente os técnicos da Funai para conversar conosco e delimitar a nossa terra, e mande colocar as placas'”, ela conta.
A região da TI Andirá-Marau foi invadida duas vezes, em 1981 e 1982, pela petrolífera francesa Elf-Aquitaine. A multinacional estava a serviço da Petrobras em um “contrato de risco”, no qual o contratado assume as responsabilidades pelo eventual fracasso da empreitada.
Quase 350 km² de mata foram derrubados ao todo. As comunidades indígenas passaram a conviver com o tráfego aéreo de helicópteros e operários que, bêbados, invadiam as aldeias.
À época, Donato foi questionado por um repórter do jornal Porantim sobre como os indígenas puderam resistir à invasão sem partir para a violência. O taxaua-geral respondeu que os Sateré Mawé eram “um povo de paz por natureza”.
Mas admitiu que passou por sua cabeça atear fogo nas máquinas, no acampamento dos operários e, principalmente, no depósito de bebidas da empresa —onde havia cerveja de graça para moradores da aldeia. Anos depois, a comunidade conseguiu retirar a empresa de lá sem que isso fosse necessário.
A habilidade de Donato e Emílio os levou a uma banca de advogados que incluía o jurista Dalmo Dallari na causa pela saída da Elf-Aquitaine do território e o pagamento de uma indenização milionária. A comunidade saiu vitoriosa e, em 1986, a terra indígena foi homologada pelo governo José Sarney.
“Eles não tinham muita noção desse processo burocrático-administrativo da Funai, mas sabiam exatamente o que queriam, e não importava que houvesse ditadura, [que os invasores fossem] Petrobras ou empresa francesa”, conta Lorenz.
Donato seguiu como a principal referência política do seu povo, mesmo após deixar formalmente a posição de tuxaua-geral. Recebia políticos, dava entrevistas e, principalmente, dizia sempre o que pensava mesmo que suas opiniões constrangessem lideranças mais novas. Era uma enciclopédia da cosmologia Sateré Mawé em pessoa.
Era muito enfático ao dizer que os indígenas deviam esquecer o dinheiro, a pinga e a vida na cidade. Trabalhou pela proteção da terra até seus últimos dias de vida, organizando mutirões para limpar a mata ao redor das placas que identificavam os limites da TI. Donato deixa a esposa, três filhos e três filhas.
coluna.obituario@grupofolha.com.br
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