A também ativista, que despontou na SPFW em 2021, lembra a infância na floresta amazônica e as violências sofridas por seus antepassados e critica a política de Jair Bolsonaro

Manoella Smith

Quando a modelo e ativista indígena Zaya Guarani estreou na São Paulo Fashion Week no ano passado, abriu os braços enquanto caminhava pela passarela. “Foi algo muito forte para mim, como se um portal se abrisse”, relembra.

Ela participou do desfile do estilista baiano Isaac Silva, um dos maiores nomes do afroempreendedorismo na moda nacional, que apresentou uma coleção com estampas baseadas na cultura afro-indígena. “Tinha feito teste para todas as marcas [do evento] e Isaac foi o único que me aceitou. Ele não quis apagar a minha essência, mas enaltecer”.

A modelo e ativista indígena Zaya – Divulgação



Hoje com 21 anos, Zaya vive em Paris, é embaixadora da organização humanitária Legacy Fórum e tem planos de se mudar para Nova York. Já fez campanha para marcas brasileiras e internacionais e é uma das fundadoras do coletivo Indígenas na Moda.

Mas a modelo pede atenção especial quando, em conversa por videochamada com a coluna desde Berlim, começa a falar de suas origens. “Minha mãe e minha avó cresceram no meio da perseguição entre garimpeiros e indígenas.”

“A minha mãe nasceu e viveu numa comunidade perto de Belém do Pará. Quando tinha 18 anos, sofreu uma violência [sexual]. Era algo normal, muitos garimpeiros e mineradores invadiam o território. Ela era virgem e engravidou.”

Meses depois, Zaya nasceu em um hospital em Porto Velho devido ao parto complicado, mas viveu até o começo da adolescência na floresta amazônica. Descendente das etnias Kamurape e Guarani Mbya, a modelo descreve seu passado com afeto, mas como um período difícil e precário.

“As pessoas não têm noção de como é [viver em uma comunidade indígena]. A gente realmente vive da natureza, do açaí, da mandioca, dos peixes. Cresce em casa de madeira e de barro, não tem ajuda sanitária.”

“O grande problema do indígena para [conseguir] manter a sua comunidade é ter recursos naturais. A Amazônia está esgotada. O território está envenenado. O rio está tomado por mercúrio.”

A modelo se mudou com a mãe para Porto Velho no começo da adolescência. Um mês antes de completar 16 anos, ganhou uma bolsa parcial para estudar em um colégio privado alemão no Rio de Janeiro. Com incentivo da mãe e do padrasto, Zaya mudou-se sozinha para a capital fluminense. “Eu era inocente e não sabia como era viver numa cidade grande, tive que me tornar uma adulta”, recorda.

Ela alugou um quarto em uma casa de família e diz que contava o dinheiro que sua mãe enviava todo mês para conseguir pagar as contas, se alimentar e bancar a outra metade dos estudos.

“A parte mais difícil foi lidar com o bullying e o preconceito. As pessoas na cidade grande ainda têm aquela ideia de que o indígena tem que estar na floresta. Lidava constantemente com o racismo na escola, até por parte dos professores, e fora de lá”.

Após se formar, Zaya se mudou para a capital paulista com o sonho de ser modelo. Entre risos, conta que bateu na porta de várias agências e ouviu “mais ‘nãos’ que Gisele Bündchen” —que também foi rejeitada no início de sua carreira.

A perspectiva mudou quando conheceu Dayana Molina, também ativista indígena, que a ajudou a tirar o DRT, registro da categoria, e impulsionar sua carreira. Mais do que ajuda profissional, a nova amizade também foi uma forma de retorno a suas origens.

“Naquela época, eu tinha medo de dizer que eu era indígena porque tinha tanto racismo contra o nosso povo”, diz.

E segue: “Quando minha mãe foi me registrar, não deixaram colocar meu nome indígena. Muitos cartórios não permitem nossos nomes de origem”.

A modelo foi registrada como Jéssica, embora sua mãe tenha escolhido Í’rara Sawiá, que vem do Tupi Guarani —o segundo nome pronuncia-se “zaya”. “É como se eu fosse a filha de Tupã, nosso maior Deus. É um nome forte, sou abençoada e iluminada pelos ancestrais da terra”, explica.

Em janeiro de 2021, Zaya assinou contrato com a agência Ford Models e adotou o nome indígena de vez. Ela e Dayana também fundaram o coletivo Indígenas na Moda.

A modelo e ativista Zaya no Acampamento Terra Livre, em Brasília – Divulgação



“A gente ajuda profissionais [a entrarem no mercado] e oferece direcionamento para grandes empresas. A marca chega para a gente [e pergunta]: ‘Você tem um indígena capacitado para trabalhar com a gente nesta campanha?’. E a gente não só indica, como dá todo o suporte para a contratação”.

Zaya diz que se cansou de presenciar casos de apropriação cultural durante sua carreira. “Um grande problema foi ver meninas se passando por indígenas porque tinham aquele estereótipo. E você pergunta se é indígena, de qual etnia, e elas não sabem responder”.

E prossegue: “A moda ainda tá muito ‘old school’. A gente tem que começar a mudar esse meio racista. Nossas mulheres brasileiras são tão diversas, mas não pode ser uma vitrine só pela vitrine”.

Zaya decidiu encerrar seu contrato com a Ford em janeiro deste ano. “A gente [ela e Dayana] estava indo em protesto, fazendo nosso coletivo acontecer e a agência não tinha nenhuma atitude”, explica. “Hoje em dia, internacionalmente, o que mais acontece é modelo querendo virar ativista. Eu nasci assim e fui me tornando modelo junto com meu ativismo. E a Ford não via isso em mim”.

Naquele mês, ela já mirava uma carreira internacional quando conheceu seu marido, um francês, no Hotel Fasano, no Rio de Janeiro. Fabricio trabalha com consultoria de grandes marcas de luxo e ajudou a lançar a carreira da modelo americana plus-size Ashley Graham. “Ele me disse: ‘Olha, eu vou te levar para fora e vamos montar sua carreira’”.

E Zaya embarcou, com o objetivo de trabalhar com marcas que abracem sua militância. “No exterior estão mais dispostos a me aceitar como ativista”, analisa.

A modelo e ativista indígena Zaya – Divulgação



No mês passado, a modelo foi ao Festival de Veneza para dar uma palestra sobre o documentário “O Território”, de Alex Pritz, uma coprodução com a comunidade indígena Uru-eu-wau-wau.

“Estou indo de conferência em conferência para explicar às pessoas que o nosso grande problema hoje é o governo”.

Ela diz que o presidente Jair Bolsonaro (PL) “deu alvará para que fazendeiros pudessem invadir comunidades, tentou acabar com direitos indígenas e a demarcação de terras. E a Funai [Fundação Nacional do Índio] não fez nada, pois está institucionalizada“.

“Se o presidente tiver que matar metade da população brasileira para que a economia esteja boa, ele vai fazer isso”, afirma ainda. Ela cita o assassinato do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, em junho deste ano.

“Aquilo foi perseguição e assassinato. Não sei como é que minha amiga Txai Suruí [ativista indígena que discursou na COP26 e colunista da Folha] faz. Dá medo, a gente está em constante insegurança”.

Zaya critica a gestão de governos anteriores e cita a construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu, em Altamira, no Pará, nos governos petistas. “Não é que eu tenha um amor pelo Lula [PT], mas ele é a única solução que o brasileiro tem hoje”, segue.

A avó da modelo, filha de liderança pajé da etnia Kamurape, ainda vive isolada na Amazônia, no estado de Rondônia. “A última vez que conversamos foi há seis anos. Ela falou bem assim para mim: ‘Não quero que você venha aqui com a sua mãe, não quero contato com ninguém. Mas você não se preocupa porque eu vou guiar seu caminho’”.

“A nossa maior celebração é estar vivo. Só a gente sabe a quanta atrocidade já sobreviveu. Se eu não tivesse a coragem dos meus ancestrais, jamais teria saído de Rondônia”, finaliza.

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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2022/10/recebi-mais-naos-que-gisele-bundchen-diz-modelo-indigena-zaya.shtml

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