Encontro na Colômbia fecha ciclo do Conversas da Amazônia, com trocas entre oito experiências do Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela

Texto: Angélica Queiroz

Encontro aconteceu entre 3 e 8 de agosto em Letícia, na Colômbia (Foto: Erick Morales – Produtora Espectro)

Mais de uma dezena de línguas indígenas –  além do português, do espanhol e do “portunhol” – conviveram durante a primeira semana de agosto em Letícia, na tríplice fronteira onde as Amazônias colombiana, peruana e brasileira se encontram. Cerca de 130 pessoas, entre indígenas de diversos povos, representantes de comunidades locais, de organizações da sociedade civil, aliados estratégicos, parceiros e financiadores se reuniram para trocar experiências durante a quinta edição do Conversas da Amazônia.

O encontro é organizado, anualmente, pela Aliança Norte Amazônica (ANA), uma rede de nove organizações da sociedade civil, de cinco países, que atuam na região ao norte do rio Amazonas. O Iepé é parte da ANA e participou de todas as cinco edições do Conversas da Amazônia. Este ano, o tema foi a conectividade entre florestas, rios, seus povos e suas culturas.

Diversas rodas de conversa incentivaram as trocas entre as delegações (Foto: Erick Morales – Produtora Espectro)

Embora, em português, a palavra “conectividade” remeta principalmente à tecnologia, o foco das conversas foi a união entre territórios e povos na defesa de seus modos de vida, enraizados em cosmovisões que envolvem respeito aos ecossistemas e à dimensão espiritual. Ainda assim, as conversas também evidenciaram como a tecnologia pode ser uma aliada na articulação entre os povos, especialmente diante das grandes distâncias dessa imensa região. Muitas delegações enfrentaram jornadas de vários dias até Letícia, combinando deslocamentos de barco, avião e ônibus.

“Somos uma família dentro da floresta, com uma ciência que é universal. Isso é algo extraordinário”, comentou Wilmer Gomez Morales, da delegação da Colômbia. “Nossas ferramentas estão nos nossos sistemas de conhecimento, que se uniram para uma luta mais robusta e conjunta”, completou, fazendo referência à experiência que apresentou no encontro: o Macroterritório de Jaguares de Yuruparí, um espaço de articulação política, cultural e territorial formado por quatro governos indígenas do leste amazônico colombiano.

Lideranças escutaram e falaram sobre desafios comuns e aprendizados que podem ser exemplo para os parentes que também vivem no norte da Amazônia (Foto: Leonor Valentino – Iepé)

Oito experiências, implementadas nos cinco países amazônicos, foram apresentadas e discutidas em profundidade durante a semana. Todas elas levaram a Letícia exemplos práticos de como a união, com a implementação de redes e alianças, fortalece seus povos. Partindo de contextos diferentes, incluindo desde um grupo de campesinos que vive nos Andes peruanos, onde estão as nascentes do Rio Amazonas, até uniões transfronteiriças, que envolvem mais de um país para garantir a conservação de enormes corredores ecológicos. 

Para o coordenador da Aliança Norte Amazônica, Felipe Samper, as conversas evidenciaram como a conectividade se materializa. “Conectividade não é uma palavra que estamos inventando, ela é a condição da vida, mas hoje está em risco porque temos territórios fragmentados e ameaçados”, pontuou. “Entender a experiência do outro é importante porque nos ajuda a pensar na nossa própria. Construímos grandes conexões a partir das pequenas”, completou.

União do Território Wayamu: exemplo do sentido amplo da palavra conectividade

A delegação do Iepé e seus parceiros levou para o intercâmbio a experiência da União do Território Wayamu, um processo coletivo de organização e fortalecimento de um conjunto de mais de 20 povos (yanas) indígenas predominantemente da família linguística Karib, cujos territórios se estendem pelos estados do Pará, Amazonas e Roraima, sob uma identidade comum, ancorada em um pano de fundo social e cultural compartilhado historicamente nessa ampla região. Trata-se de uma experiência de governança que une 4 Terras Indígenas (Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera, Kaxuyana-Tunayana e Ararà), numa área de mais de 7 milhões de hectares. 

“A luta individual a gente não vence, mas a luta coletiva sim”, afirmou Juventino Pesirima Kaxuyana, liderança da Terra Indígena (TI) Kaxuyana-Tunayana, que reforçou como a articulação está ajudando a proteger o território. “Antigamente a nossa arma era a flecha, hoje é o papel e a caneta”, ressaltou, mostrando aos parentes o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e os Protocolos de Consulta dos Povos do Território Wayamu, ferramentas construídas num processo coletivo que resultou na própria União do Território.

 Delegação do Wayamu falou sobre como experiência de união fortalece a governança no território (Foto: Angélica Queiroz – Iepé)

A relação histórica entre os parentes que vivem na região do Wayamu é antiga e, além dessas ferramentas práticas de gestão e governança, possibilita ainda a proteção de povos indígenas isolados, que também vivem no território, lembrou o cacique Zaqueu Feya, liderança hexkaryana da TI Nhamundá-Mapuera. “São muitos povos e lutamos não só pelo nosso bem-estar, mas também pelo deles”, afirmou.

Mesmo os povos vizinhos, que não fazem parte do núcleo do Wayamu, constituído por caciques e lideranças de oitenta aldeias e oito associações de base nas quatro TIs já mencionadas, participam dos diálogos para decisões comuns e destacam a relação de amizade. Tanto que José Maria Atroari, liderança da TI Waimiri Atroari, era parte da delegação que foi a Letícia. “Estamos há muitos anos lutando pela defesa da nossa terra e trabalhando junto com nossos parentes que também falam línguas karib. A gente se entende e por isso estamos aqui com eles”, comentou, em uma das mesas de troca das quais participou durante o encontro.

Em outro grupo brasileiro, acompanhado pelo Instituto Socioambiental (ISA), estiveram povos que vivem na Bacia do Rio Negro, apresentando a experiência da Rede de Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMA), iniciativa existente há 20 anos, e que articula conhecimentos ancestrais e metodologias de pesquisa. Oscarina Caldas, do povo  Desana, contou que ela e os demais AIMAs mantêm cada um o seu diário, que inclui anotações sobre suas atividades na agricultura, extrativismo, pesca, caça e observações sobre o tempo e o clima. Esses registros são reunidos e analisados na elaboração de calendários anuais, que abrangem aspectos ecológicos, socioeconômicos, rituais e as constelações astronômicas que são referência para esses ciclos de atividades. “Assim podemos cuidar melhor do nosso território e também da floresta”.

 Duas delegações brasileiras, de diferentes regiões da Amazônia, se encontraram durante o evento (Foto: Jaime Serrano – Fundação Gaia Amazonas)

Lagos de Tarapoto: gestão própria garante equilíbrio do ecossistema 

Divididos em canoas e botes  conduzidos por lideranças locais, os curacas, os participantes do encontro também visitaram um território ancestral dos povos Ticuna, Cocama e Yagua (Ticoya). Eles foram ver de perto a área de 45 mil hectares de lagos, igarapés e áreas úmidas cercadas por selva, localizada no município de Puerto Nariño, a duas horas de barco de Letícia. 

Foi uma oportunidade para conhecer a experiência dos Lagos de Tarapoto, designados como Sítio Ramsar pela sua importância hídrica, graças a um processo coletivo, liderado pelas 22 comunidades da reserva indígea Ticoya. O título é dado a áreas úmidas de importância internacional reconhecidas pela Convenção de Ramsar, um tratado intergovernamental assinado em 1971. Para receber essa designação, a área precisa atender a critérios especiais, como abrigar espécies raras ou ameaçadas.

Delegações conheceram os Lagos de Tarapoto, no município de Puerto Nariño (Foto: Erick Morales – Produtora Espectro)

Com acordos comunitários de pesca, vigilância ambiental, restauração e regulamentação de atividades como o turismo, essas comunidades consolidaram uma forma de gestão própria que garante renda para seus moradores, equilíbrio do ecossistema e continuidade da sua cultura. “Somos diferentes povos indígenas, mas unidos. Aqui cada animal e cada árvore tem vida e todos nos conectamos”, ressaltou o presidente da Associação de Autoridades Indígenas Ticunas, Cocamas e Aguas (Aticoya), Geronimo Laureano del Águila, que recebeu as delegações na sede da associação. “Para resistir, entendemos que precisávamos nos organizar”, completou.

Essa conversa foi uma das mais marcantes para uma das lideranças da delegação brasileira, Benaias Waryeta, que vive na TI Ararà, que está estudando a implementação de um projeto de turismo de base comunitária. “Achei impressionante a organização deles. Essa experiência é um exemplo de como cuidar do território e gerar renda para beneficiar a comunidade no longo prazo”, comentou. Também chamou a sua atenção o esquema de vigilância dos lagos, que têm acordos de pesca e uma base de fiscalização indígena para garantir o cumprimento das regras para proteção da biodiversidade na região.

Curacas receberam as delegações na sede de sua associação para uma conversa após a visita (Foto: Erick Morales – Produtora Espectro)

Quinta edição fecha o ciclo de Conversas da Amazônia

Entre 2019 e 2024, as edições anuais do Conversas da Amazônia congregaram cerca de 190 pessoas e 48 experiências, materializando a aposta da ANA em tecer uma rede de conhecimentos locais facilitando os diálogos entre aqueles que habitam a Amazônia e outros atores decisivos para o futuro desta região. A edição de 2025 fecha esse ciclo de encontros, consolidando uma visão regional para construir uma conectividade baseada nos processos territoriais liderados por povos indígenas e comunidades locais.

Jamer Magno López Agustín, do povo Shipibo Konibo, do Peru, resumiu: “ficou muito claro que a conectividade já existe. O que precisamos é desfronteirizar nossos territórios”. Ou, como brincou Juventino Kaxuyana, numa frase que ao final do evento já havia virado um bordão repetido em todos os cantos pelos parentes, em várias línguas: “conexão já!”

O V Encontro Regional Intercâmbios de Conhecimento “Conversas da Amazônia” foi organizado pela ANA (Aliança Norte Amazônica), por sua secretaria executiva Fundação Gaia Amazonas e financiado pelos projetos Green Livelihoods Alliance: Forests for a Just Future (Voor veranderaars – Milieudefensie) e Projeto TerrIndigena – AFD (Agência Francesa de Desenvolvimento) e FFEM (French Facility for Global Environment).

Fonte: https://institutoiepe.org.br/2025/08/cinco-paises-multiplas-conexoes-povos-indigenas-do-norte-da-amazonia-fortalecem-lacos-e-trocam-saberes/