É quase nula a valorização das economias da sociobiodiversidade diante do racismo e do apetite brutal dos que querem menos floresta, mais monoculturas e dinheiro rápido a qualquer custo

Deborah Lima – Presidente do conselho diretor do ISA

Rodrigo Junqueira – Secretário executivo do ISA

* Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico

Assista à animação:

A natureza é a base para a existência das sociedades humanas. Não há sociedades humanas se não houver clima adequado, solos férteis, oceanos limpos e assim por diante.

A economia hegemônica, porém, foi moldada no colonialismo e em uma guerra contra a natureza. Desde a revolução científica, no século 17, parte da humanidade busca a qualquer custo tornar-se mestre e senhora da natureza da qual fundamentalmente depende para sobreviver.

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Desmatamento, queimadas, garimpo, grilagem e outras agressões contra a floresta e seus povos estão nos levando a um ponto sem retorno|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Chegamos a um ponto de inflexão em que as ruínas dessa guerra se transformaram em terra arrasada por um governo negacionista que levou ao limite a ideia de que áreas protegidas e os povos que vivem nelas – indígenas, quilombolas, ribeirinhos e comunidades tradicionais – são entraves para o desenvolvimento econômico do país.

Apesar de tudo, avançamos em experiências práticas na relação entre esses povos e os mercados (públicos, privados, nacionais, internacionais), contribuindo para fortalecer uma nova economia que não pode ser comparada a monoculturas subsidiadas, atividades predatórias e ilegais e produtos sintéticos.

Essa economia é uma contribuição para um futuro sustentável e já faz parte do dia a dia de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em seus territórios. Já é economia circular. Bioeconomia. Agroecologia, agrofloresta. Economia regenerativa. Já tem bioconstrução. Há séculos.

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Povos indígenas praticam a economia do cuidado como modo de vida há séculos e são os maiores responsáveis pela preservação das florestas|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Trata-se de um modelo inovador, praticado há milênios. Economias que, para além do resultado monetário, cuidam ao mesmo tempo das pessoas e da natureza.

Há a partir desse modelo um enorme potencial a ser desenvolvido, além da capacidade didática de transformar o futuro ao colocar em primeiro lugar as pessoas, a vida e a diversidade. Por isso, chamamos de economias da sociobiodiversidade.

Fortalecer, reconhecer e valorizar as economias da sociobiodiversidade, porém, passa por uma importante transformação no entendimento de que essas populações e seus territórios são produtores de conhecimento, contribuições e serviços fundamentais para a vida no planeta.

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Ribeirinhos do Xingu são exemplo do manejo positivo da biodiversidade, extraindo a castanha-do-Pará para a comercialização justa|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Estudo publicado pelo ISA mostrou que esses povos e suas economias são responsáveis, juntos, pela proteção de um terço das florestas no Brasil. Nos últimos 35 anos, somente as Terras Indígenas protegem 20% do total de florestas nacionais.

Os estudos de arqueologia e ecologia da paisagem mostram que os manejos da paisagem, baseados nos modos de vida e na cultura de povos indígenas e comunidades tradicionais, foram e são responsáveis pela formação de ambientes de diferentes biomas brasileiros, inclusive a Amazônia.

Esse manejo da paisagem fundamenta os Sistemas Agrícolas Tradicionais, que têm transformado floresta em floresta por milênios, garantindo a reprodução dos ecossistemas. São práticas tradicionais de plantio, coleta e extrativismo que, no geral, mantêm as paisagens com baixíssimo impacto ambiental, especialmente quando comparado a outros modos, como as monoculturas.

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Com o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, comunidades no Vale do Ribeira (SP) alimentam quem mais precisa e fortalecem a agricultura familiar|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Práticas humanas de baixíssimo impacto ambiental não só possibilitam maior diversificação de parcelas de floresta como a própria manutenção da paisagem, também garantindo a continuidade dos serviços ecossistêmicos gerados por ela para a sociedade, como biodiversidade, manutenção do estoque de CO2, água, polinização, entre outras.

Perspectivas de povos e comunidades tradicionais, em grande parte, enxergam entes da natureza como agentes dotados de intencionalidades e com os quais é preciso estabelecer relações para alcançar uma boa gestão do território e da própria vida social.

Com isso, fica evidente a necessidade de avançar sobre o entendimento de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), instituído pela Lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021.

Com base na interpretação da lei e no entendimento da relevância das contribuições e serviços ambientais gerados pelos modos de vida de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, estamos propondo uma definição complementar e específica para Contribuições e Serviços Socioambientais.

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Rede de Sementes do Xingu, que atua na Amazônia e no Cerrado, utiliza práticas ancestrais de manejo para semear as florestas do futuro|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Contribuições e Serviços Socioambientais são atividades/práticas individuais ou coletivas associadas aos modos de vida, conhecimento, cultura e manejo da paisagem de povos indígenas e comunidades tradicionais em seus territórios, que favorecem a reprodução, a recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos, e que atualizam e produzem a diversidade cultural.

O reconhecimento dessas contribuições e serviços por políticas públicas adequadas é fundamental para fortalecer as economias da sociobiodiversidade e conter o avanço do modelo econômico hegemônico sobre os territórios tradicionais, criando mecanismos de promoção dos modos de vida locais.

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio) são exemplos de políticas públicas que, mesmo com recursos escassos, possibilitam criar ciclos positivos.

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O fortalecimento das economias da sociobiodiversidade e do conhecimento dos povos da floresta é a chave para deter a destruição do planeta|Adams Carvalho/Cama Leão/ISA

Ao mesmo tempo, empresas atentas ao bem-viver das comunidades e ao cuidado com os territórios têm assumido um papel importante ao fomentar essas economias, alçando ao protagonismo povos e comunidades tradicionais e dando início a experiências de justa repartição de benefícios.

Na história milenar e ancestral desses povos, porém, as políticas públicas e a sensibilidade de setores produtivos para o tema ainda são um soluço de valorização diante do racismo e do apetite brutal dos que querem menos floresta, mais monoculturas e dinheiro rápido a qualquer custo.

Agora é hora de inovar, com mais protagonismo das comunidades no desenvolvimento tecnológico e com a justa repartição de benefícios pelo trabalho conjunto. Inovar com formas de reconhecer e valorizar esses povos pelos serviços prestados ao planeta. E inovar na garantia e aprimoramento de seus direitos, com políticas públicas que promovam seus modos de vida.

É hora de retribuir essas populações e aprender com seu jeito de viver. É hora de cuidar de saúde, vida, presente e futuro. O futuro pode ser outro.

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Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/e-hora-de-retribuir-os-povos-que-cuidam-das-florestas

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