Foto: decreto nº 12.720, de 17 de novembro de 2025

Reconhecimento durante a COP 30 conclui um processo que envolveu Funai, organizações indígenas, universidades e apoiadores internacionais

Texto: Angélica Queiroz

A área compreendida pela Terra Indígena (TI) Kaxuyana-Tunayana nunca deixou de ser habitada pelos povos indígenas que reivindicam sua regularização. Os registros históricos assinalam a presença  dos Katxuyana, Kahyana, Tunayana e outros na região pelo menos desde o século XVIII. Demandada junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2002, a TI teve sua homologação assinada nesta terça-feira (18/11) pelo Presidente Lula. O decreto atende a um apelo de diversos povos presentes em Belém para a COP 30, que participaram de diversas manifestações reforçando esse objetivo.

Além da TI Kaxuyana-Tunayana também foram homologadas outras três TIs no Mato Grosso: Uirapuru, Estação Parecis e Manoki. O “pacote de proteção territorial da COP 30” entregue pelo Presidente Lula e pela Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, inclui ainda ainda a declaração de mais dez outras TIs em diversas regiões do Brasil e a delimitação de outros seis territórios indígenas.

Lideranças recebendo a notícia da homologação em Belém (Foto: Ruben Caixeta – Iepé)

A homologação é a etapa final do processo de demarcação, que efetiva o direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, conforme assegura a Constituição Federal de 1988. A partir desse ato, os povos da região passam a ter maior segurança jurídica sobre a posse de seu território, condição essencial para a proteção da área e para a continuidade de sua existência com seus modos de vida, línguas, rituais, pensamento e saberes próprios. Diversos estudos demonstram ainda que as Terras Indígenas têm sido barreiras eficazes contra o desmatamento e a degradação ambiental.

A TI Kaxuyana‑Tunayana está localizada no norte do Pará, divisa com o Baixo Amazonas, abrangendo partes dos municípios de Faro e Oriximiná (Pará) e Nhamundá (Amazonas). De acordo com os estudos de identificação e delimitação, a TI possui aproximadamente 2 milhões de hectares. O território é parte de um corredor contínuo de áreas protegidas, em fronteira com outras TIs, e habitado por pelo menos 16 povos indígenas, incluindo alguns em isolamento voluntário.

Mapa da TI (Thomas Gallois – Iepé)

“Território homologado é garantir direito à vida”

“A homologação da TI Kaxuyana-Tunayana durante a COP-30 é um marco de justiça histórica e de liderança internacional, demonstrando ao mundo que o Brasil reconhece, valoriza e fortalece seus povos tradicionais como parceiros essenciais na luta contra a crise climática”, afirmou Ana Kahyana, presidente da Associação Indígena Kaxuyana, Tunayana e Kahyana (AIKATUK), organização indígena que é parte da União do Território Wayamu, e que representa os indígenas da terra homologada. 

A AIKATUK liderou as mobilizações indígenas para a demarcação física ao longo de 2024-25, em conjunto com as demais organizações indígenas do território Wayamu, de forma coordenada com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), da  Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). O Iepé foi parceiro da AIKATUK durante todo o processo, tendo firmado Acordo de Cooperação Técnica com a Funai em 2024 para a etapa da demarcação física, com apoio da Nia Tero e Bezos Earth Fund.

“A homologação da TI Kaxuyana-Tunayana para mim e para meu povo é garantir direito constitucional, é garantir proteção dos yanas dos isolados que são nossos parentes que ali moram. Território homologado é garantir direito à vida. Sem território não há vida saudável, não há saúde e não  há cultura”, comenta Juventino Pesirima Kaxuyana, vice-presidente da AIKATUK.

Ana e Angela comemoram a conquista na COP 30 (Foto: Ruben Caixeta – Iepé)

Angela Kaxuyana, representante internacional da COIAB na Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e liderança indígena da TI Kaxuyana-Tunayana, também comemora: “Tentaram nos diluir entre outros yana (povos), mas nossa necessidade de conexão com esse território foi mais importante. Eu fui criada no Tumucumaque, mas o Txurwata me criou com espírito no rio Kuha, que ele tanto fala em todas as histórias. Quando voltamos para a região descobrimos que a história contada pelo amu (avô) era real. Fomos apenas obrigados a adormecer para sobreviver longe de casa, mas nossas vidas sempre pertenceram ao Kahu, Katxuru, Yaskuri, Turuni, e tantos outros afluentes e Igarapés. Essa homologação representa um grande cumprimento da promessa da nossa geração aos mais velhos que foram estarrecidos pela opressão, pressão e omissão. Agora a volta pra casa se completa. Essa volta significa estar por inteiro, com dignidade e reconhecimento que merecemos pela resistência e não desistência. É um dever cumprido como movimentos indígena no qual estou inserida pela necessidade de luta, mas também dever cumprido como pessoa, neta de ingarïne que sou. Nós ingarï, sempre estivemos lá, permanecemos lá e permaneceremos lá”, relata.

“Ao acelerar a demarcação, o governo faz justiça a séculos de espera. Não é um favor: é o reconhecimento legítimo das terras que sempre foram indígenas”, comentou Nara Baré, diretora da Nia Tero no Brasil.

“Esta já é a COP com a maior representação indígena da história das COPs. Isso ninguém tira de nós. E não chegamos aqui somente com presença física, mas com uma participação efetiva”, afirmou a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, durante o anúncio oficial no Pavilhão Brasil da Zona Verde, nesta terça-feira. “Vamos continuar articulando e dialogando muito para que a gente possa sair daqui com esse reconhecimento da demarcação das terras indígenas como a medida mais eficaz para enfrentar a crise climática. Estamos trabalhando para que a demarcação dos territórios seja reconhecida como uma política climática”, completou.

Reparação histórica

A demarcação da TI Katxuyana-Tunayana é uma forma de reparação histórica para com esses povos, pois sua demanda de demarcação está intimamente ligada à história de remoção forçada sofrida por inúmeros povos dessa região norte do Pará, especialmente a partir da década de 1960, durante o regime militar. “Essa retirada ocorreu de forma induzida, em um contexto de políticas estatais de ‘pacificação’ e integração dos povos indígenas, associadas à expansão de projetos de colonização, mineração e infraestrutura na Amazônia”, explica Denise Fajardo, coordenadora do Programa Tumucumaque-Wayamu no Iepé.

Durante a ditadura militar, os Kaxuyana, Tunayana, Txikiyana e outros grupos da região, foram removidos ou atraídos para áreas distantes de seus territórios de origem, em em grandes aldeamentos estruturados por Missões Religiosas  a Oeste, na região dos Rios Nhamundá e Mapuera, seja a Leste, no Parque do Tumucumaque, ou mesmo em direção a missões instaladas no sul da Guiana e do Suriname. Aqueles que insistiram em permanecer, ou recuaram para lugares de difícil acesso (isolando-se do contato com não indígenas) ou acabaram se concentrando mais ao sul do território, como é o caso dos Katxuyana e Hixkaryana.

Por isso, Denise ressalta que hoje o Brasil corrige uma injustiça de 57 anos. “A homologação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana encerra 57 anos de exílio vivido pelos povos Katxuyana, Kahyana e Tunayana, removidos à força de seu território em 1968 para a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, onde os conheci em 1992. Esta decisão consolida um processo técnico conduzido com rigor, do GT da Funai em 2008 ao RCID de 2015; e da Portaria Declaratória de 2018 à demarcação física concluída em 2025. Hoje, o Brasil corrige uma injustiça histórica que talvez poucos soubessem estar em aberto, e que marcou profundamente a vida de várias gerações. A homologação devolve a esses povos a dignidade de viver em seu território e de conduzir seu próprio futuro”.

Assembleia, na aldeia Matrinxã, apresentou resultados da demarcação física da TI Kaxuyana-Tunayana (Foto: acervo Iepé)

Etapas de uma demarcação

A demarcação passa por quatro principais etapas: a elaboração do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), que identifica e delimita a terra indígena; a portaria declaratória, pelo Ministro da Justiça, que formaliza o reconhecimento da terra indígena; a demarcação física, que consiste na colocação de marcos e placas delimitadoras; e a homologação presidencial, ato final que garante a posse definitiva da terra aos povos indígenas. 

Iepé foi parceiro na demarcação física da terra, que já foi finalizada (Foto: acervo Iepé)

A TI Kaxuyana-Tunayana teve seu RCID publicado pela Funai no Diário Oficial da União em 19 de outubro de 2015. Em 19 de setembro de 2018, teve a sua Portaria Declaratória assinada pelo Ministério da Justiça. Em 19  abril de 2024, a Funai firmou Acordo de Cooperação Técnica com o Iepé para iniciar a demarcação física. Em setembro de 2025, a Fundação Christiano Ottoni, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com equipes indígenas locais, finalizou os trabalhos. Por fim, em 18 de novembro de 2025, a TI foi homologada pelo presidente da República.

Ao receber a notícia, as lideranças do Território Wayamu enviaram uma carta de agradecimento ao Presidente Lula e à Ministra Sônia Guajajara, com um convite para que eles visitem o território para celebrar com eles essa conquista histórica. Confira:

Carta ConviteBaixar

Ao longo dos anos esse processo teve o apoio da Rainforest da Noruega, Fundação Moore, Nia Tero e Bezos Earth Fund.

Fonte: https://institutoiepe.org.br/2025/11/homologacao-da-ti-kaxuyana-tunayana-consolida-20-anos-de-trabalho-tecnico-e-mobilizacao-indigena/