Em comemoração aos 20 anos do Instituto, o Iepé recebeu a antropóloga Lúcia van Velthem para compartilhar sua trajetória
Nascida em 1948, na cidade do Rio do Janeiro, Lúcia Hussak van Velthem cresceu entre vizinhos de várias origens europeias. “Eu me dividia entre uma avó alemã e uma avó belga, mas no andar de baixo vivia uma família de judeus poloneses, na casa em frente, franceses e à direita, italianos. Nessa rua, mais em cima, viviam os espanhóis e um ‘inglês, solteirão, que era o assunto do bairro’. Foi assim que ela descreveu o casarão do século 19 onde passou o início da vida, no bairro do Catete no Rio de Janeiro (RJ). “Penso que isso teve uma influência direta na minha decisão de ser antropóloga”, disse.
Aos 11 anos, Lúcia mudou-se para Petrópolis, onde estudou em um colégio católico até o final da adolescência. Alcançando a maioridade, voltou para a capital fluminense para iniciar a faculdade de Museologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), em 1969. “Na museologia, pensei primeiro em ir para a arqueologia, mas não era propriamente uma arqueologia amazônica, era egiptologia, coisas delirantes. Quem me salvou dessa loucura foi o professor Edson Carneiro, um dos precursores dos estudos afro-brasileiros, do qual eu fui assistente”, lembrou Lúcia sobre o início dos trabalhos com as populações tradicionais.
Ela esteve em um encontro com toda a equipe do Instituto Iepé em 29 de setembro. Esses encontros, chamados Jornadas Indigenistas, são parte das comemorações de 20 anos do Instituto e estão recebendo pessoas chave na história da organização.
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Durante a graduação, Lucia estagiou na equipe do professor Aécio de Oliveira e contribuiu para a criação do atual Museu de Folclore Edson Carneiro, localizado no bairro do Catete. Pleiteou, em fins de 1970, uma bolsa como pesquisadora no Museu Nacional, sob a orientação da professora Heloísa Fénelon Costa, dedicada à restauração de acervos etnográficos, mas não existia essa linha de estudo no museu. “Entre muitas coisas que se aprende em museologia, uma delas é ler objetos, e eu escolhi estudar a plumária dos Tukano do início do século 20. Essa escolha determinou o caminho que sigo até o presente”, pontuou.
Com a intensa repressão do regime militar nos espaços de construção de conhecimento, Lúcia decidiu se engajar politicamente contra a ditadura, e em meados de 1973, mudou-se para Belém, no Pará. “Eu não tinha passaporte, não podia ir para o exterior. Naquela época, as pessoas que não tinham passaporte e eram contra o governo militar, migravam depois para estados distantes.”
Com a ajuda de Heloísa Fénelon, que a apresentou ao Dr. Eduardo Galvão, Lúcia van Velthem passou a trabalhar no Museu Paraense Emílio Goeldi, ainda com a bolsa do Museu Nacional. Em 1975 foi efetivada como pesquisadora do museu. Entre 1973 e 1974 realizou pesquisa de campo entre os Munduruku do Rio Cururu, acompanhando o antropólogo Protásio Frikel.
Para garantir a permanência no quadro de pesquisadores, era necessário efetivar estudos em pós-graduação. “Ainda em 1975, eu conheci a professora Lux Vidal, em um jantar em Belém. Depois escrevi uma carta para ela e fui aceita como sua orientanda. Em 1976 consegui ingressar no mestrado de Antropologia Social na USP.” Ela seguiu sob a orientação de Lux até a conclusão do doutorado, com a pesquisa sobre a arte, a cosmologia e a cultura material dos Wayana e Apalai, em aldeias do Rio Paru de Leste (PA).
Em 1978, Lúcia identificou que 5 aldeias indígenas estavam fora da área demarcada como Parque do Tumucumaque e produziu um documento para solicitar à Funai a criação de um grupo de trabalho para a sua ampliação. “Dominique [Gallois, hoje coordenadora do Programa Zo’é do Iepé] e eu íamos à Brasília, não nos recebiam na Funai e, então, voltávamos à São Paulo. Isso durou uns 4 anos. Quando o pedido foi acatado, era no sentido de que fosse delimitada outra área no sul do parque de forma contínua, mas isso não foi implementado de forma imediata.”
Em 1984 o relatório de delimitação ficou pronto e uma portaria nesse mesmo ano criou a Área Indígena Paru de Leste. Anos depois, em 1991, um decreto alterou essa designação, conferindo o nome atual: Terra Indígena Rio Paru d´Este, que possui 1.195.785 hectares e se estende por três municípios do Pará: Almeirim, Alenquer e Monte Alegre.
Depois do encerramento do doutorado e 20 anos de trabalho junto aos Wayana-Apalai, Lúcia ingressou em um programa de cooperação bilateral entre o IRD (França) e a Universidade de Campinas (Unicamp) e foi trabalhar com os povos Baré, Tukano e Baniwa, do Médio Rio Negro, entre os quais pesquisou a cultura material relacionada ao sistema agrícola tradicional.
A partir do trabalho de uma grande equipe, foi elaborado um dossiê que reconheceu, em 2010, o sistema agrícola tradicional como patrimônio cultural imaterial. Esse programa conduziu Lúcia ao alto Rio Juruá, no Acre, para pesquisas entre pequenos agricultores, produtores da conhecida farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul.
As pesquisas antropológicas no médio Rio Negro permitiram a elaboração de um relatório circunstanciado (RECID) que delimitou a Terra Indígena Jurubaxi-Téa no município de Santa Isabel. “Sinto orgulho de ter me dedicado à demarcação dessas terras indígenas”, lembra ela.
Em 1998, aceitou o convite da prefeitura de Belém para ser diretora do Museu de Arte de Belém (MABE), onde permaneceu até 2002. No ano seguinte, organizou uma exposição com desenhos do artista plástico indígena Feliciano Pimentel Lana, de 83 anos, do povo Desana, uma curadoria que precedeu em alguns anos as atuais mostras decoloniais em São Paulo. Foi a curadora do módulo “Artes Indígenas” da Mostra do Redescobrimento, instalada em São Paulo em 2000.
“Eu passei a minha vida nos museus. O campo museal é um campo dinâmico e sobretudo um campo de luta. É uma luta muda, pequena, sombria, mas é uma luta diária contra o esquecimento e a perda da memória e, também, para a conservação dos objetos. Eu e minha equipe lutamos para a conservação de objetos que existem há mais de 100 anos” – Lúcia Van Velthen.
Lúcia retornou à TI Rio Paru d’Este para trabalhar em um projeto elaborado pelo Iepé com oficinas de valorização cultural, entre 2005 e 2019. Os resultados dessas oficinas renderam a produção de livros sobre cerâmica, trançados e a arte gráfica Wayana e Aparai, editados pelo Iepé e o Museu do Índio. Anteriormente, em 2002, participou das discussões iniciais de fundação do Instituto Iepé, com Dominique Gallois em Macapá. Depois foi com Lux Vidal para o Oiapoque para participar de oficinas relacionadas à criação do Museu Kuahi.
Aos 70 anos, se tornou docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural do Museu Emílio Goeldi, na linha de pesquisa sobre Cultura e Patrimônio. Agora, prestes a se aposentar, ela deseja se dedicar, nos próximos anos, aos projetos do Programa Tumucumaque, junto ao Instituto Iepé. “Estou animada para essa nova virada”, finalizou Lúcia.
Antes de se despedir da equipe do Iepé presentes na Jornada Indigenista, Lúcia destacou três pontos que sempre a nortearam:
– “Sonhar, sonhar, sonhar! – Com a sua progressão pessoal, de sua equipe, com novos desafios, novos objetivos, com um novo dia, com um novo presidente que nos transforme em um país mais justo e menos desigual.”
– “Não se levar muito à sério! – O que deve ser levado a sério é o trabalho desenvolvido, os compromissos assumidos, as relações estabelecidas, os objetivos a serem alcançados.”
– “Ter sempre em mente que é melhor ser alegre do que ser triste, como indicou Vinicius de Moraes. Alegria é resistência, ela não se rende, é potência de vida que nos leva a lugares onde a tristeza nunca nos levaria, como pontuou Deleuze.”
Conheça algumas publicações de Lúcia Van Velthen na infoteca do nosso site:
O Livro de Arte Gráfica Wayana e Aparai
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