As epidemias são parte do pacote perverso com o qual os indígenas lidam desde o começo da colonização. Apoie as iniciativas de solidariedade às comunidades
No dia 20 de março, quando os casos de covid-19 não haviam chegado ainda à casa do milhar no país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) escreveu uma nota exigindo do Governo Federal a implementação de um Plano de Ação Emergencial para preservar as comunidades diante da chegada da pandemia. As reivindicações apontavam em duas direções: aprimoramento do Subsistema de Saúde Indígena, incluindo dotação orçamentária adicional, e proteção dos territórios para que as comunidades pudessem evitar a chegada do vírus.
Como esperado, o governo fez o oposto. À já desmontada Funai, cujo estrangulamento orçamentário analisamos em relatório recente, impôs a Instrução Normativa n. 9 que, junto ao PL2633, incentiva e regulariza a grilagem das terras indígenas. Como é fácil de prever, a invasão dos territórios por gente estranha à comunidade é uma das causas da disseminação do vírus nas aldeias, somada a habitual violência dos conflitos fundiários. Além disso, a Sesai que se depara com a pandemia é a mesma que vem sofrendo com as tentativas sistemáticas de desmantelamento do modelo de saúde diferenciada. O PL1142, que institui o Plano Emergencial de enfrentamento da Covid-19 para Povos e Comunidades Tradicionais, foi aprovado apenas no dia 21/05 na Câmara dos Deputados, e segue aguardando a tramitação no Senado. Enquanto isso, os povos indígenas insistem em viver e nos mostram a urgência de aprendermos, nós também, a adiarmos os fins de mundo.
Nova epidemia, velho pesadelo
As epidemias são parte do pacote perverso com o qual os indígenas lidam desde o começo da colonização. A contaminação por doenças de branco serviu como arma contra as populações originárias desde a invasão de suas terras pelos portugueses. Agora, 520 anos depois, o novo coronavírus reedita o pesadelo que, a bem da verdade, nunca cessou.
Ainda em abril, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou um relatório no qual apontava as terras indígenas de maior vulnerabilidade à chegada do vírus. Segundo o documento, 34% dos indígenas residiam em municípios de alto risco de contaminação naquele mês, antes, portanto, da interiorização da doença. Já o indicador construído pelo Instituto Socioambiental, atualizado em tempo real, mostra que há territórios de alto risco em todo o país, sendo a região amazônica a principal afetada. Hoje, segundo dados coletados pela Apib, são 610 indígenas contaminados pelo novo coronavírus, 44 povos atingidos e 103 mortos.
Os números, como a Apib faz sempre questão de frisar, são antes de tudo pessoas, com sonhos, trajetórias, histórias. São como Rondinelli Fulni-ô, 42 anos, cantor e artesão. Ou como o Tikuna Aldenor Basques Félix Gutchicü, um dos articuladores do Curso de Pedagogia Intercultural da Universidade do Estado do Amazonas. Ou ainda como o ilustrador Desana Feliciano Lana, de 83 anos. Muitos deles, ainda que não todos, idosos. Talvez nos escape o significado das mortes dos velhos. Como povo da mercadoria, vemos no idoso aquele que já não produz, que só dá despesa. Como bem ressaltou a carta da Assembleia da Resistência Indígena, para esses povos é justo o contrário. Os anciões são pilares de saberes, seus melhores professores. As perdas são incalculáveis.
Solidariedade
Diante de um governo de política abertamente genocida e assimilacionista, a disseminação da Covid-19 entre os indígenas não é um problema, mas uma mãozinha, uma ajuda no projeto de morte. Por outro lado, como fazem há 500 anos, o que as comunidades estão nos mostrando é que deixar-se morrer não é uma opção. Contra a intencional subnotificação estatal, multiplicam-se as iniciativas de monitoramento autônomo, que se negam a enterrar parentes na invisibilidade. Contra a política assassina, a organização da vida, explícita em iniciativas como a construção de cartilhas de conscientização na língua como as feitas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) distribuída em territórios como a já colapsada São Gabriel da Cachoeira (AM) ou produção de equipamentos de proteção individuais que tem sido feita pelos Fulni-ô em Aguas Belas (PE). Contra a indiferença, as dezenas de campanhas de solidariedade.
Alguns de nós talvez ainda não tivéssemos nos dado conta de como o neoliberalismo é, muito mais que um regime econômico, uma forma de produzir subjetividades. O sujeito neoliberal é esse, que faz questão de usar o corpo como vetor de contágio nas ruas, que diz que as vidas importam menos que a economia, que fala os “e daís?” que escutamos diariamente. A nossa luta passa, portanto, fundamentalmente por nos contrapor a essa forma de estar no mundo, tal como essas dezenas de iniciativas já estão fazendo no cotidiano das comunidades. Se, como declarou Djuena Tikuna, para os povos indígenas estar vivo é um ato de rebeldia, é nessa e em outras rebeldias perenes que encontraremos saída para esse buraco – da pandemia, mas também do capitalismo extrativista, do colapso climático – que estamos todos/as.
Fonte: https://www.inesc.org.br/deixar-se-morrer-nao-e-uma-opcao/
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