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Artigo originalmente publicado na Folha de SP

Os povos tradicionais da Bacia do Xingu já estão pagando o preço da maior crise hídrica no Brasil em 91 anos. Em decisão recente, o TRF-1, em Brasília, suspendeu decisão da Justiça de Altamira (PA) que impedia o monopólio do uso da água do rio Xingu pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

A liminar obrigava a concessionária Norte Energia a liberar água suficiente para garantir condições mínimas de vida de povos indígenas, comunidades tradicionais e das centenas de espécies de fauna e flora no trecho de 100 km de rio conhecido como Volta Grande do Xingu.

O desembargador federal e presidente em exercício do TRF-1, Francisco de Assis Betti, derrubou liminarmente a decisão sem discutir o mérito dos argumentos jurídicos. Com isso, autorizou a usina de Belo Monte a desviar a maior parte da água do rio com o argumento de que uma crise hídrica “imprevisível” exige medidas excepcionais.

No entanto, especialistas e organizações da sociedade civil vêm alertando há anos para a iminência da falta de água devido à emergência climática e ao aumento de desmatamento na região. O governo brasileiro, longe de enfrentar as causas estruturais do problema, tem optado pelo negacionismo e autoritarismo.

José Wanderley Marangon, ex-professor da Unifei (Universidade Federal de Itajubá-MG), defende que o planejamento energético não pode continuar considerando apenas as vazões históricas dos rios e deve incorporar as projeções dos modelos climáticos, que simulam cenários futuros de chuva no Brasil.

Também era conhecida, a partir do desenho de engenharia da UHE Belo Monte, a necessidade de estabelecer regras de partilha da vazão do rio entre a hidrelétrica e os territórios indígenas impactados. Essa é a principal condicionante de viabilidade ambiental da usina desde 2010, quando foi emitida a primeira licença ambiental.

Além disso, o aumento significativo do desmatamento na Amazônia e nas nascentes do Rio Xingu —maior ameaça à geração de energia da UHE Belo Monte— sequer é mencionado na decisão do TRF-1.

A bacia hidrográfica do Xingu já teve mais de 21% de sua área de floresta amazônica desmatada, excluída a parte compreendida no cerrado. Entre 2015 e 2020, o aumento foi de 166%. E o primeiro semestre de 2021 apresentou o pior resultado dos últimos três anos, com 92.104 hectares de floresta derrubados.

Embora o desmatamento, num primeiro momento, possa aumentar o escoamento superficial e, com isso, amplie a vazão de um rio durante o período chuvoso, a tendência em seguida é a de reduzir ou interromper o fluxo dos cursos d’água.

As crises hídricas têm causas e responsáveis. É mais do que urgente que as autoridades encarem o problema do desmatamento e da emergência climática como uma ameaça não só aos ecossistemas e aos povos da floresta, mas à própria geração de energia e à economia do país.

A destruição das florestas tem impacto direto no desempenho do agronegócio brasileiro, por exemplo. Recentemente, a JBS, segunda maior empresa de alimentos no mundo, defendeu publicamente a regeneração florestal na Amazônia.

Se o TRF-1 está realmente preocupado com a crise hídrica, deveria antes responsabilizar o Poder Executivo e lembrá-lo da sua tarefa constitucional de zelar pela integridade dos ecossistemas.

Do contrário, essa conta vai ser paga justamente pelos povos tradicionais —paradoxalmente, os responsáveis por garantir que as nossas florestas ainda estejam de pé e que a água continue correndo pelos rios.

Autores

André Sawakuchi
Especialista em evolução geológica e mudanças climáticas na Amazônia e sua relação com a biodiversidade (Instituto Geociências da USP)

Juarez Pezzuti
Especialista em ecologia, etnoecologia e manejo de fauna, com ênfase em répteis aquáticos (UFPA)

Camila Ribas
Especialista em biogeografia e evolução da biodiversidade na Amazônia (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia)

Alberto Akama
Especialista em zoologia, com ênfase em sistemática de siluriformes neotropicais e conservação das espécies animais (Museu Paraense Emílio Goeldi)

Eder Mileno Silva De Paula
Especialista em geografia física, hidrogeografia, geoprocessamento e sensoriamento remoto (UFPA)

Cristiane Costa Carneiro
Especialista em ecologia aquática com ênfase em quelônios (Ministério Público Federal)

Tânia Stolze Lima
Antropóloga especialista em etnologia indígena e povos ameríndios (UFF)

Thais Mantovanelli
Antropóloga que monitora os impactos da UHE Belo Monte sobre os povos indígenas da Volta Grande do Xingu (UFSCar)

 

 

 

Fonte: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu/conta-da-crise-hidrica-nao-pode-ser-paga-pelos-povos-do-xingu

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