Nota técnica analisa queimadas dentro e fora de Terras Indígenas, além de destacar os riscos e pressões às “florestas do futuro”

Mariana Soares – Jornalista do ISA

Na Amazônia Legal, ao impulsionar o desmatamento e as queimadas, as rodovias vêm aumentando a vulnerabilidade das Terras Indígenas (TIs) e ameaçando diretamente as chamadas “florestas do futuro”. É o que aponta a nota técnica Queimadas em Terras Indígenas, lançada, nesta quinta (31/10), pelo Instituto Socioambiental (ISA).  

De janeiro a setembro de 2024, foram identificados 8 milhões de hectares de áreas queimadas e 58,7 mil focos de calor no entorno das estradas na Amazônia Legal. Mais de 30% de todos os focos aconteceram ao redor das rodovias Cuiabá-Santarém (BR- 163), Transamazônica (BR-230) e Manaus-Porto Velho (BR- 319).  

No documento, foram analisados o histórico de queimadas em TIs; o panorama geral de queimadas nessas áreas em 2024; o impacto das rodovias na incidência dos focos de queimadas; a atuação de brigadas em TIs; a interferência de fenômenos climáticos como El Niño e La Niña nas queimadas; e o impacto das mudanças climáticas nas queimadas. Além disso, a nota técnica traz respostas a perguntas sobre o tema e um compilado com as principais publicações no Diário Oficial da União (DOU) e na imprensa. A análise cruza dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e de diversas outras bases.

‘O dia que nunca acabou’

A BR-163 ficou marcada pelo “Dia do Fogo”, entre 10 e 11 de agosto de 2019, quando  grupos orquestraram queimadas em diversas áreas em seu entorno no sudoeste do Pará. 

Trata-se de “um dia que não acabou”, segundo análise da nota técnica. Desde aquele momento, são registrados cada vez mais focos de incêndio no entorno da BR-163. Até setembro de 2024, foram registrados mais de 8 mil focos, um aumento de 180% em relação a 2023. No total, já foram devastados 1 milhão de hectares no entorno da estrada.

Já a região no entorno da BR-319 respondeu por apenas 6% dos focos de calor em rodovias na Amazônia, no mesmo período. Esse cenário, entretanto, pode mudar com os planos do governo de concluir a pavimentação da rodovia. Segundo dados citados pelo estudo, 57% da extração ilegal de madeira no Amazonas, em 2022-2023, ocorreu em áreas de influência da estrada.

A presença de rodovias próximas a TIs também aumenta a vulnerabilidade desses territórios, mostra a análise. Por exemplo, a TI Utiariti (MT), está próxima à BR-364 e foi uma das mais impactadas, com 66% dos focos de calor localizados dentro da área de influência da estrada. 

A pavimentação dessas vias cria novas ramificações e vicinais, que ampliam o desmatamento. TIs como Araguaia (TO)Pimentel Barbosa e Areões (MT), também próximas estradas, estão entre as dez mais afetadas, mostrando como essas áreas estão sob crescente pressão.

Focos de calor detectados no entorno das BRs 163, 230 e 319 | ISA
Focos de calor detectados no entorno das BRs 163, 230 e 319 📷 ISA
Todo ano mais ‘Dia do Fogo’

Segundo a nota, 2024 caminha para ser um dos piores anos em queimadas na história. Até setembro, foram registrados 172,8 mil focos no Brasil. Isso significa que, em nove meses, o país registrou um valor equivalente a 90% do total de 2023, com um aumento médio mensal de 33% em relação aos últimos cinco anos. 

A análise também destaca que a maior parte das queimadas ocorreu em propriedades rurais privadas: 56,6% dos focos de calor mapeados até setembro aconteceram em áreas com Cadastro Ambiental Rural (CAR).

A nota técnica reforça ainda a relação direta entre o desmatamento e as queimadas, com 10 municípios campeões na destruição da vegetação nativa liderando o ranking das queimadas, com São Félix do Xingu (PA), Altamira (PA) e Corumbá (MS) na dianteira. 

Altamira, que encabeça o ranking de desmatamento da Amazônia Legal, registrou 31,7 mil hectares de floresta derrubada em 2023, representando 3,5% do total na região. Em 2024, foram registrados 4,6 mil focos no município.

Já São Félix do Xingu, o segundo município mais desmatado na mesma região, teve 31,4 mil hectares de floresta desmatada em 2023 e 5,6 mil focos de calor até setembro de 2024, o maior número registrado em qualquer município do Brasil.

Corumbá foi o município mais desmatado no Pantanal. O município concentrou mais da metade (52,8%) de todo desmatamento no bioma e acumulou 4,6 mil focos de calor até setembro de 2024. 

Área de queimada no Médio Xingu | Marcelo Salazar / ISA
Área de queimada no Médio Xingu 📷 Marcelo Salazar / ISA
Impactos nas Terras Indígenas 

Até setembro deste ano, foram registrados 22,1 mil focos de calor em TIs em todo país, o que equivale a 12,8% do total de registros.  A TI Kayapó (PA) aparece com o maior número de focos no período (2,4 mil), representando 11,1% do total de focos em TIs no Brasil. O Parque Indígena do Araguaia (TO) vem logo em seguida, com 1,7 mil focos e 7,8% do total. O terceiro lugar fica com a TI Kadiwéu (MS), com 1,4 mil focos,  6,5% do total. 

De janeiro a fevereiro, foram registrados recordes de focos de calor em TIs. Em fevereiro, houve um aumento de 322% nos focos de calor nessas áreas, puxado pela TI Yanomami (RR-AM), em comparação com o mesmo período de 2023. Tanto nesse território quanto na TI Raposa Serra do Sol (RR) houve aumentos expressivos nos focos de calor devido à seca extrema associada ao El Niño. 

No Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, o fogo muitas vezes se espalha tendo origem em propriedades privadas próximas,onde o uso de capins invasores, altamente inflamáveis, aumenta a vulnerabilidade da floresta e o risco de incêndios descontrolados. Esse capim chega à TI em tratores e maquinários usados para limpar rodovias.

A falta de controle sobre as fronteiras das TIs, especialmente em zonas de transição entre florestas e zonas agrícolas, cria um “efeito dominó”, onde o fogo queima áreas desmatadas e se propaga para as preservadas. Isso é pior em territórios como o Xingu, onde a pressão de atividades ilegais é constante.

A nota técnica detalha preocupações acerca das queimadas em vegetação nativa. Até o período analisado, esse tipo de vegetação correspondia a 32,6% do que foi queimado em TIs, implicando na degradação de zonas de sub-bosque e em um risco à existência das próprias florestas. 

Apesar das áreas queimadas associadas ao desmatamento em TIs representarem apenas 6% do total, em junho de 2024 o aumento das queimadas foi de 70%,  se comparado à média histórica para este mesmo mês nas TIs. Isso é agravado pela combinação de fatores que, somados às mudanças climáticas, criam um ciclo destrutivo onde as áreas desmatadas e mais secas ficam mais propensas a incêndios, facilitando que o fogo se espalhe para áreas preservadas.

Governo federal tem apostado nas brigadas, compostas em sua maioria por indígenas, para combater o fogo em Terras Indígenas | Felipe Werneck / Ascom / Ibama
Governo federal tem apostado nas brigadas, compostas em sua maioria por indígenas, para combater o fogo nos territórios 📷 Felipe Werneck / Ascom / Ibama
“Florestas do futuro” ameaçadas

Outro ponto destacado na nota é o impacto das mudanças climáticas. O documento afirma que as transformações nos padrões de clima e temperatura estão aumentando os riscos de queimadas e intensificando os incêndios em florestas tropicais, que geralmente não enfrentam queimadas. 

Com isso, estão aumentando incêndios em áreas identificadas como sub-bosque, as vegetações abaixo do topo das grandes árvores. Em 2024, a queima dessa vegetação representou 26% do total registrado no bioma Amazônia. “São as florestas do futuro queimando”, afirma a nota. 

Além disso, segundo a análise, as queimadas mudam os ciclos das funções essenciais para a manutenção do ecossistema e para a mitigação dos impactos climáticos. 

Outro ponto de destaque foi o impacto das mudanças climáticas no manejo tradicional do fogo pelas comunidades indígenas. O estudo mostra que mesmo as práticas sustentáveis de uso controlado do fogo para agricultura e caça estão em risco, uma vez que com o aumento da seca e do calor, o bom uso do elemento está dando lugar ao “fogo bravo”, que traz consigo grande potencial de destruição.

Em áreas como o TIX, as comunidades relatam que os sinais da natureza, como o canto das cigarras e as estrelas, não são mais confiáveis para prever o clima, evidenciando a perda do equilíbrio ambiental. 

Indígenas na linha de frente contra queimadas

Outro ponto trazido no estudo é a atuação de brigadistas indígenas. O governo federal tem apostado na contratação de brigadistas temporários, em sua maioria indígenas, por meio do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). 

A estratégia visa o uso do conhecimento tradicional indígena no manejo do fogo. Segundo o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, a Funai conta atualmente com cerca de mil brigadistas indígenas atuando em TIs, a partir de um convênio firmado  entre as duas autarquias e renovado neste ano. 

Fonte: https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/na-amazonia-rodovias-impulsionam-queima-de-area-duas-vezes-maior-que-o

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