Com lideranças de todo o país, conferência estrutura propostas em cinco eixos para orientar a futura Política Nacional de proteção às Mulheres Indígenas

– Foto: André Corrêa/MPI

Osegundo dia da 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas foi marcado por discussões nos cinco eixos temáticos que estruturam o encontro. Durante esta terça-feira (05), as delegadas representantes de todos os biomas brasileiros foram divididas em grupos de trabalho que discutiram Direito e Gestão Territorial, Emergência Climática, Políticas Públicas e Violência de Gênero, Saúde e Educação e Transmissão de Saberes Ancestrais. A programação incluiu rodas de conversa voltadas à construção coletiva de propostas alinhadas às realidades dos territórios e às demandas das mulheres indígenas de todo o país.

A conferência tem como objetivos avaliar a atuação do Estado em relação às mulheres indígenas, reformular garantias específicas, contribuir para um plano nacional de enfrentamento às violências e propor diretrizes para uma política pública construída a partir da perspectiva das próprias indígenas. Embora a cerimônia de abertura tenha ocorrido na segunda-feira (04), os posicionamentos de lideranças e autoridades do primeiro dia permaneceram como referência nos debates.

No eixo Emergência Climática, as participantes compartilharam os efeitos concretos das mudanças no clima sobre seus modos de vida. A escassez de água, a alteração dos ciclos de chuva, o aumento do desmatamento e a insegurança alimentar foram temas recorrentes debatidos entre as mulheres.

A ministra Marina Silva havia alertado, na véspera, que o mundo vive à beira do colapso ambiental e que os povos indígenas, especialmente as mulheres, são as que mais sofrem. Segundo a ministra, ela oferece não apenas resistência, mas caminhos. “O estilo de vida do povo indígena é um estilo de vida que conserva, que usa com sabedoria os recursos”, disse. Para ela, esse conhecimento deve estar no centro das soluções globais, não como retórica, mas como prática política.

Ju Kaingang, da Aldeia Araribá, no interior de São Paulo, é um exemplo na linha de frente dos efeitos deletérios que as mudanças climáticas causam. Ela contou que, embora cada aldeia enfrente uma realidade diferente, todas estão ligadas a uma única “Mãe Terra”. De acordo com ela, em seu território, as queimadas se aproximam com frequência e causam destruição. Os animais estão desaparecendo, as florestas se perdendo, e o esforço coletivo de reconstrução esbarra na falta de apoio.

“Muitas vezes dizem que o povo indígena não faz nada, mas nós somos protetores da Terra. Onde eu moro, a devastação é grande. Estamos tentando resistir, mas sozinhos não conseguimos. Precisamos de apoio”, desabafou a indígena. Segundo ela, as mulheres que cuidam da roça sofrem mais. “A terra está fraca, não tem mais força para plantar. A gente planta só para sobreviver, não para abastecer a aldeia inteira. Cada família faz o que pode, e mesmo assim a gente compartilha. Não desmatamos. Sabemos onde plantar e onde colher”, disse.

Violência de Gênero

As discussões sobre Políticas Públicas e Violência de Gênero, por sua vez, revelaram a necessidade de estruturas de proteção mais eficazes e de políticas formuladas com a participação efetiva das mulheres indígenas. A ministra Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e da Cidadania destacou na abertura da conferência que a participação feminina em posições de poder é um avanço significativo, mas que precisa ser complementada com ações concretas.

“A presença de mulheres nesse espaço e na política por si só é revolucionário, por si só é transformador, porque nunca nos sonharam nesse espaço. É maravilhoso olhar para Brasília e ver tantas mulheres de tantos povos, de tantos lugares do Brasil, ocupando esse lugar que é um lugar nosso por direito. Então, eu acho que a primeira grande vitória é essa”, afirmou.

Esse sentimento de pertencimento e construção coletiva foi reforçado por Bikunaki Karajá, do povo Karajá do Tocantins. Ela disse que, apesar de já ter participado da etapa regional de construção da conferência, esta foi a primeira vez em que se sentiu parte de um espaço verdadeiramente participativo. “Temos histórias diferentes, mas um sofrimento que é muito parecido. Foi a primeira vez que me senti parte de uma construção conjunta entre mulheres, para mulheres.”, disse.

Ela conta que uma das principais propostas debatidas no grupo de gênero foi a criação de casas de acolhimento para mulheres vítimas de violência, com apoio financeiro que colabore para sua autonomia. “A maioria depende dos maridos e não consegue sair das relações. Por isso, a proposta que trazemos é de criar uma casa de acolhimento para mulheres vítimas de violência, com apoio para que possam se manter com autonomia.”, explicou.

Gestão Territorial: demarcação já

No eixo Direito e Gestão Territorial, o foco esteve na defesa dos territórios como condição para a existência e a autonomia dos povos indígenas. A demarcação de terras foi um dos principais temas debatidos no grupo. Paula Pataxó, do povo Pataxó do extremo sul da Bahia, levou à plenária o retrato de uma região marcada por conflitos permanentes. Disse que a violência fundiária atinge diretamente as mulheres, que estão na linha de frente da proteção das famílias e de suas comunidades.

“Em nosso território, os latifundiários entram, invadem e muitos acabam matando. E isso afeta diretamente as mulheres. Somos nós que nos preocupamos com as crianças, com nossos maridos, com os anciãos. E como é que vamos proteger os nossos, fugir ou reagir diante de tanta violência? Muitos anciãos já foram mortos. É uma situação muito difícil. Por isso trouxemos esse tema para a conferência. É um ponto muito forte, que não afeta só o extremo sul da Bahia, mas vários outros territórios”, disse.

Airy Gavião, do povo Gavião do Pará, foi outra mulher que levou à plenária a urgência de avançar na demarcação dos territórios. “Sem território, não tem saúde, não tem cultura, não tem nada”, afirmou. Segundo ela, essa é a principal bandeira das mulheres indígenas que participaram do eixo, que aprovou 26 propostas, entre elas, a priorização de ações voltadas tanto para mulheres que vivem em suas terras quanto para aquelas que, por diferentes razões, estão fora dos territórios.

“Temos o nosso território, mas algumas de nós vivem na cidade. A proposta é garantir políticas que atendam as mulheres indígenas dentro e fora de seus territórios, com o direito de ir e vir assegurado”, explicou a indígena que comemorou a realização da conferência. “É um passo importante para termos mais visibilidade e ocuparmos mais espaços”, disse.

Saúde

A pauta da Saúde a avaliação das mulheres foi de que o cuidado com o corpo feminino nas aldeias ainda é marcado por insegurança, falta de acolhimento e ausência de profissionais indígenas. Na abertura da conferência, o secretário Weibe Tapeba anunciou que o governo está finalizando uma nova versão da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Pela primeira vez, o documento incluirá um capítulo específico sobre a saúde das mulheres indígenas.

Zilda Joaquim, do povo Kaingang, que vive na região do Pampa no Rio Grande do Sul, relatou que muitas mulheres da sua comunidade deixam de fazer exames preventivos por não se sentirem à vontade com profissionais homens e não indígenas. “A maioria das mulheres se sente mais confortável quando pode conversar com alguém que fala sua língua, que entende sua cultura”, explicou.

Técnica de enfermagem, ela costuma intermediar os atendimentos sempre que possível, mas reconhece os limites da atuação individual. “Quando posso, acompanho essas mulheres, explico suas dores, traduzo suas dúvidas. Mas não consigo estar presente em todas as consultas.”, afirmou.

A proposta discutida no eixo prevê a presença de uma representante em cada território, capaz de orientar, acolher e intermediar os atendimentos, inclusive nos casos de violência. Para Zilda, esse tipo de cuidado é fundamental para garantir que as mulheres tenham voz. “O conhecimento que a gente compartilha aqui fortalece a comunidade inteira. Volto para casa com o sentimento de que posso ajudar muito mais do que já fazia”, comemora.

Educação e Transmissão de Saberes Ancestrais

Durante a cerimônia de abertura da conferência, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou que “futuro sem ancestralidade é um futuro infértil”, reconhecendo o papel das mulheres indígenas como guardiãs da cultura e da biodiversidade. A fala se refletiu nas discussões do eixo Educação e Transmissão de Saberes Ancestrais, que reuniu propostas voltadas à incorporação de saberes tradicionais nos currículos escolares e ao fortalecimento das línguas indígenas nas comunidades.

Também na abertura, a embaixadora Vanessa Dolce de Faria, do Ministério das Relações Exteriores, apresentou programas voltados à formação de lideranças indígenas. Um deles é o Kuntari Katu, que prepara jovens para atuar na COP30, marcada para 2025, em Belém (PA). Outro destaque foi o lançamento de bolsas específicas para candidatos indígenas no Instituto Rio Branco, tradicional escola de formação diplomática do país.

Do bioma amazônico, Carina Larga, do povo Cinta Larga de Rondônia, destacou a urgência de manter a língua materna viva nas escolas e de reconhecer a importância dos “professores sabedores”. “Hoje, a juventude precisa manter e respeitar sua cultura também dentro das escolas”, defendeu. “A língua materna não pode morrer. Ela tem que estar viva dentro das escolas”, afirmou.

Para Carina, a conferência marca uma virada simbólica, ao oferecer espaço e escuta às mulheres indígenas. “São elas que têm a visão, a preocupação com o território, com a cultura. É nesse espaço que essa visão vem sendo ouvida. É super importante estar aqui”, concluiu.

As propostas construídas ao longo do dia estão sendo sistematizadas e vão compor o documento final da conferência, que servirá de base para elaborar uma proposta normativa que vai instituir a Estratégia Nacional de Fortalecimento e Proteção dos Direitos das Mulheres Indígenas.

Fonte: https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2025/08/mulheres-indigenas-debatem-e-formulam-propostas-para-politicas-publicas-em-conferencia-inedita