São Paulo – Movimentos do campo, indígenas, quilombolas e ambientalistas afirmam que, em meio à pandemia de coronavírus, é “surreal” colocar em votação o Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, que trata da regularização fundiária. Segundo analistas, além de legalizar a grilagem de terras, a proposta vai ampliar o desmatamento na Amazônia e da violência no campo.
O PL 2.633 substitui a Medida Provisória (MP) 910, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro, que caducou na última terça-feira (19). No mesmo dia, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que é o “momento adequado” para discutir a proposta, que pode ir a votação nesta quarta-feira (20).
O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, afirmou que o texto não é bom, não há acordo entre os parlamentares, nem é o momento adequado para discutir um tema tão relevante. Ele disse que a votação, neste momento, fere o regime especial especial adotado para discutir propostas voltadas ao combate da pandemia.
“Qualquer parlamentar ou agente público deste país deveria estar concentrado em salvar vidas, e não votar um projeto de lei, para abrir espaço para grileiros se beneficiarem. Não é nem bom, nem é o momento, nem tem acordo. Tudo o que ele (Maia) falou é um grande absurdo”, disse hoje, em entrevista coletiva virtual.
Ele também destacou que essa votação ocorreria justamente num contexto de aumento do desmatamento na Amazônia, às vésperas da temporada de queimadas. As disputas territoriais também devem agravar os conflitos no campo. “A gente quer discutir. Exatamente por isso é que não pode ser votado nesse momento.”
Inconstitucional
Para o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Renato Souto Maior, assim como a MP 910, o PL 2.633 é “claramente inconstitucional”, pois viola direitos fundamentais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, e também da própria União.
Pelo regime especial de tramitação, o projeto não passará pelas comissões da Câmara, quando se realizam audiências públicas que promovem o debate entre os grupos envolvidos. “Na visão do CNDH, essa proposta não deveria sequer ser votada. Não estamos afirmando que não deve ser debatida. Mas, nesse momento, é fundamental que todos os esforços estejam concentrados no combate ao coronavírus”, afirmou Souto Maior.
Não são apenas ambientalistas e ativistas que se opõem à discussão nesse momento. Um grupo de 40 empresas de varejo e investidores internacionais – dentre elas a Tesco e a Sainsbury, grandes redes de supermercados no Reino Unido, além da Burger King UK – enviaram carta ao Congresso Nacional manifestando preocupação com as consequências ambientais do projeto.
Arcaismo como projeto
“Não é uma batalha entre ambientalistas e o agronegócio. É a defesa pela vida de um amplo número de organizações, pastorais, movimentos do campo, das águas e da floresta, centrais sindicais, movimento de direitos humanos, incluindo até mesmo setores do agronegócio”, destacou o membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Luiz Zarref.
Segundo ele, o PL 2.633 abre precedente para a legalização da grilagem não apenas na Amazônia, mas em todo o território nacional. A estimativa é que a tomada irregular de terras da União deve acarretar perdas de até R$ 80 bilhões aos cofres públicos. Outro precedente é que, se for aprovado, outras projetos de lei serão discutidos em regime especial, mesmo sem guardar relação com o combate à covid-19.
Vistoria
O principal problema é que esse projeto abre a possibilidade para que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realize convênios com diferentes instituições – de cartórios a bancos, passando até pelas Forças Armadas –, que ficariam responsáveis pela vistoria das áreas declaradas pelos supostos proprietários.
“São atores que não necessariamente tem interesse na proteção desse patrimônio”, afirmou a advogada Maíra Moreira, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos.
A proposta segundo ela, não vai beneficiar pequenos agricultores, como disse Maia. Em vez disso, vai transferir terras da União para a “esfera privada”, principalmente médios e grandes proprietários, servindo à especulação imobiliária, em vez de cumprir com a função social da propriedade.
Indígenas e Quilombolas
O arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), disse que “simplesmente trocaram seis por meia dúzia”, na comparação do PL com a MP do governo Bolsonaro que caducou. “Continuamos no caminho da morte, do esbulho e da apropriação das terras públicas, passando por cima dos direitos dos povos originários e dos mais pobres. Não é o momento dessa votação.”
Já o integrante da coordenação nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) Denildo Rodrigues de Moraes, o Bico, disse que é uma contradição a legalização expressa de propriedades griladas, enquanto que os quilombolas lutam por décadas para conseguir as demarcações de suas terras. Segundo ele, a tramitação da proposta em regime de urgência também fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê “o direito à consulta prévia, livre e informada” dos afetados por qualquer medida legislativa.
Assista: Artistas pedem que Marcelo Ramos retire de tramitação PL da regularização fundiária
Comentários