Brasília (DF) – O Acampamento Luta pela Vida iniciou a segunda-feira (23) com 5 mil indígenas, na Esplanada dos Ministérios, região central de Brasília, ao lado do Teatro Nacional. Já é um dos maiores encontros no histórico de manifestações indígenas na capital federal. E, visivelmente, o de maior participação de jovens, especialmente lideranças mulheres. O principal objetivo é acompanhar na quarta-feira (25) o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discutirá a tese do marco temporal, que restringe direitos aos territórios tradicionais.
As delegações indígenas de 112 povos de 20 estados de todas as regiões foram convocadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Foram montadas cinco tendas para atendimento de delegações de cada uma das regiões do país, para credenciamento e triagem de saúde. No início da tarde, a coordenadora executiva da Apib, Sônia Guajajara, recomendou aos responsáveis por delegações que escolhessem representantes dos Estados, povos e comunidades para que ocupassem constantemente as falas em plenária, para manter guerreiros e guerreiras alertas para os objetivos do acampamento. Também recomendou que os participantes fizessem rodízio nas tarefas práticas, como organização do local.
“Vamos fazer valer os cinco Poderes, os três do Estado e mais dois dos indígenas, que são o poder popular e o poder espiritual. Nossa força tem que estar presente nessa resistência”, exclamou Sônia Guajajara, em voz já rouca na plenária. Ela pediu que fosse realizado um grande ritual coletivo e religioso por xamãs, pajés e benzedeiras presentes. “Vamos fazer um grande ritual de pajelança, para limpar a maldade de Brasília.”
O ato ocorre durante a pandemia, com a recomendação anterior de que participassem pessoas já vacinadas contra o Covid-19. Estão sendo distribuídas máscaras e feitas testagens para detecção do novo coronavírus. Os protocolos sanitários são observados por profissionais indígenas em parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Fundação Oswaldo Cruz de Brasília e do Rio de Janeiro (Fiocruz DF e RJ), Ambulatório de Saúde Indígena da Universidade de Brasília (Asi/UNB) e Hospital Universitário de Brasília (HUB).
O marco temporal
Eloy Terena (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
O assessor jurídico da Apib, Eloy Terena, disse à Amazônia Real que a avaliação sobre o acampamento está muito positiva e as maiores expectativas começam nesta terça-feira (24) com um ato no Congresso Nacional à tarde e em seguida a marcha para o Supremo Tribunal Federal, onde os indígenas permanecerão em vigília . Cabe ao STF analisar e julgar se nos procedimentos de demarcação de terras deve prevalecer o direito originário dos povos garantidos no artigo 231 da Constituição Federal ou a tese do marco temporal.
A tese do marco temporal ficou em evidência no processo demarcatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) e passou a ser usada pelo Executivo em cerca de 300 processos judiciais no país. Em maio do ano passado, o STF suspendeu o Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU), que tentava institucionalizar o marco temporal norma nos procedimentos administrativos de demarcação.
No julgamento da quarta-feira, o STF vai julgá-la a partir do pedido de reintegração de posse movido pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-La Klãnõ. Um dos argumentos é o marco temporal, segundo o qual somente teriam direito a terras os povos que as ocupavam ou disputavam, física ou judicialmente, antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Esse processo foi reconhecido em 2019 como de “repercussão geral”, o que faz com que seja parâmetro para todas as decisões judiciais no país a partir do resultado do dia 25.
Além do RE 1.017.365, os indígenas lutam contra propostas legislativas defendidas por ruralistas, como o Projeto de Lei 490/07 , citado por Eloy Terena. Esse PL foi aprovado em junho na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal e é um dos que atentam contra direitos relacionados aos territórios, abrindo-os a empreendimentos econômicos, como mineração, agronegócio e hidrelétricas.
Ameaças aos direitos
“Se projetos como esses forem aprovados na Câmara, a Apib está pronta para entrar com ações de inconstitucionalidade”, afirmou Terena. Ele ainda disse que a Apib solicitou ao Senado a realização de uma audiência pública relacionada ao chamado PL da Grilagem (2633/2020), aprovado na Câmara em agosto, que favorece a grilagem. O PL favorece a regularização de terras por autodeclaração, e que também representa ameaças aos territórios indígenas.
O coordenador-executivo da Apib, Dinamam Tuxá, disse que os índios farão, dentro da programação do Acampamento Luta pela Vida, a marcha na frente do Congresso sem tacapes, arco, flechas e outros instrumentos culturais e religiosos que ficarão no acampamento. Mas os policiais em Brasília, espera-se, somente terão direito ao contato visual com os indígenas, com distâncias determinadas e cordões de isolamento.
Dinamam Tuxá explicou que a Secretaria de Segurança Pública do Governo do Distrito Federal, por meio de Procuradoria especializada, entrou há cerca de um mês com uma ação declaratória contra quatro organizações indígenas regionais que constituem a Apib, tentando configurar os instrumentos indígenas como armas brancas, à semelhança de facas. A ação foi impetrada no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), mas as lideranças indígenas por meio de seus advogados fizeram acordo para que os instrumentos não fizessem parte das marchas, com a condição do policiamento se manter distante, sem contato físico com os indígenas, como revistas ou pedidos de documentos.
A luta dos povos indígenas em Brasília é necessária diante dos mais de 100 projetos de leis e apensados que ameaçam direitos garantidos pela Constituição a povos tradicionais – inclusive quilombolas e ribeirinhos que necessitam de florestas em pé para a sobrevivência. Em 2018, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou o documento Congresso Anti-Indígena , contendo o perfil dos 50 parlamentares que mais representam interesses econômicos devastadores da Amazônia Legal. Publicado em 2018, o estudo revela que somente em 2017 se contabilizaram 848 tramitações de PLs contrárias à preservação florestal. Foram 1.930 procedimentos legislativos contra os direitos dos povos entre 2015 e 2017.
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