Cuiabá (MT) – Há um mês, em 18 de agosto, o cineasta e documentarista Takumã Kuikuro fez uma foto no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, que diz muito. Com um drone, capturou imagens da linha do fogo avançando sobre o território, deixando para trás um rastro de cinzas e fumaça. Com secas extremas na Amazônia, principalmente nos dois últimos anos, e chuvas cada vez mais escassas, o fogo não perdoa.
Takumã coordena brigadas voluntárias, no Alto Xingu, onde vivem nove povos em mais de 50 aldeias. Ele é da aldeia Ipatse. Como o autor das imagens do fogo na Amazônia, outros 58 indígenas integram a força-tarefa do governo federal que atua no território desde 2015. Todos eles são contratados para compor as Brigadas Federais em Terras Indígenas (BRIFs), do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A avaliação é a de que as BRIFs funcionam bem, mas não dão conta de cobrir toda a extensão do parque, que tem 2,8 milhões de hectares. “O efetivo está muito longe do ideal”, admite o coordenador regional do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), o biólogo Sandro Benevides do Carmo.
No Alto Xingu, a situação é mais grave do que nas demais regiões do Parque Indígena, um dos maiores do mundo. Isso porque o bioma amazônico divide espaço com a vegetação do cerrado. Essa composição torna o parque mais aberto e suscetível ao alastramento de chamas. No Médio e Baixo Xingu, as florestas mais densas dificultam os incêndios.
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“No ano passado, o fogo ocorreu muito forte e este ano a gente está se preparando para tentar controlar antes dele avançar”, explica Takumã Kuikuro. “A vegetação está cada vez mais seca, e o clima, cada vez mais quente. O tempo está mudando, ficando mais quente, mais seco. É grande o impacto na Terra Indígena do Xingu, estamos tendo muito trabalho para cuidar da nossa terra, da nossa natureza. Todas as lideranças do Alto Xingu estão preocupadas com isso. Realmente, moramos em uma casa bem tradicional, coberta com palha, que não deixa esquentar totalmente, mas mesmo assim é muita a quentura”, diz ele.
Mato Grosso é o Estado com maior número de incêndios neste ano, com 16.101 de focos detectados até 16 de setembro. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Pará (12.490) e Amazonas (11.893) vêm em seguida. Na comparação de 1º de janeiro até 16 de setembro de 2020, esses três estados também concentravam os maiores focos de incêndio no País, mas em um patamar bem superior. No ano passado, Mato Grosso registrou no período 36.253 focos.
Crise alimentar
Kumaré Txicao (Foto: arquivo pessoal)
Os xinguanos já sentem pelo menos dois impactos da proliferação das queimadas: crise alimentar e aumento de doenças respiratórias. “Nossas roças – de mandioca, de frutas – não estão mais nascendo naturalmente, porque dependem da chuva e a chuva não vem. A terra está cada vez mais esquentando. Quando plantamos (a roça), ela morre. A gente tem que replantar, primeira, segunda, terceira vez”, relata Takumã.
Ano passado, segundo ele, chegou a faltar comida no Alto Xingu. O polvilho, que é utilizado para o beiju, e outros alimentos tradicionais acabaram sendo comprados nas cidades, industrializados. As roças não vingaram.
“Para não faltar comida, procuramos supermercados, mas isso pode também prejudicar a saúde dos povos, trazer complicações, doenças urbanas”, alerta o documentarista indígena. Ele tem 38 anos e afirma que, na sua infância e adolescência, não havia preocupação com seca, falta de chuvas e fogo insistente.
“Antigamente, a gente plantava e não se preocupava mais. Hoje em dia temos que fazer muito trabalho nas roças para crescerem, garantindo nossa alimentação, o sustento da nossa família e evitando comidas da cidade”, diz.
Kumaré Txicao, de 43 anos, liderança do povo Ikpeng, é da aldeia Moygu, que fica no Médio Xingu. Ele conta que todo pai de família xinguano tem sua roça. Os meninos a partir dos 10 anos já começam a plantar mandioca, batata, amendoim, cará, milho e mamão. Plantam também melancia, cana de açúcar e outras lavouras.
Nos últimos anos, relata Kumaré, as mudanças climáticas transformam a cultura da queima para o plantio em perigo de incêndio fora do controle. “Tentamos nos adequar nesse mundo que estamos vivendo, acompanhar, para não perdermos a roça, mas mesmo assim a gente perde. Não chove, vai chover mais para frente. Aí temos que replantar em novembro ou em janeiro e fevereiro do outro ano. Às vezes dá certo e às vezes não, por causa da quentura e do clima mudado”, diz a liderança.
Os Ikpeng tentam controlar o fogo, mas ultimamente ele está muito forte, assim como o vento, o que dificulta o trabalho de contenção. “Dependendo do horário da queimada da roça, o fogo alastra. De início, era de 10 às 13 horas e o fogo não se alastrava, agora, nesse horário, ele alastra. Então estamos tentando mudar horário de plantar”, diz Kumaré Txicao.
Falta de ar
Transporte de oxigênio para o Posto Leonardo (Foto: Leonardo Kamaiurá)
O enfermeiro Gilmar Wagner é especialista em saúde indígena e trabalha no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xingu há 8 anos e meio. Ele observa que os meses de agosto e setembro são os piores. “O aumento das queimadas também traz consigo uma grande massa de fumaça, provocando o aumento de problemas respiratórios, principalmente em crianças e idosos”, explica.
O Dsei Xingu tem médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes indígenas de saúde, além de medicamentos e uma aeronave para retirada de pacientes graves. “Mas a logística dentro do território é muito difícil e muitas vezes para chegar em determinadas aldeias precisamos percorrer mais de 6 horas entre percurso de barco e caminhando na mata para chegarmos lá”, afirma o enfermeiro.
Wagner tem observado que, ano após ano, o nível do rio Xingu vem diminuindo muito nessa época do ano. Em suas visitas às aldeias, o profissional tem notado a formação de mais bancos de areia e alguns lugares já ficam impossibilitados de navegação.
Política do Ibama
Brigadistas no combate às queimadas na Terra Indígena do Xingu (Foto: Takumã Kuikuro)
De acordo com o coordenador do Prevfogo, Sandro Benevides do Carmo, o principal motivo do fogo é a queima de vegetação para fazer roça, acessar lagos, fazer a retirada de mel ou para outras atividades do cotidiano no Xingu. Mas em 2020 essa prática saiu do controle. “Foi um ano bem crítico, ameaçou aldeias e as comunidades se despertaram para necessidade e tem alguns brigadistas indígenas voluntários, principalmente do povo Kuikuro, que se mobilizaram”, explica Carmo. “Ano passado, estivemos no nível 3 e este ano também.”
A situação neste ano ainda está sob controle porque já em julho o fogo foi classificado em nível 2, disparando os alertas na própria população. O Ibama considera três níveis de incêndio florestal: o nível 1 que aciona brigada local, o 2 que solicita auxílio de outras brigadas do Estado e o 3 que exige recursos humanos de outros estados.
Desde 2015, 59 brigadistas precisam ser contratados anualmente: 29 no Alto Xingu, 15 no Médio e 15 no Baixo. No Alto Xingu, onde ficam as aldeias indígenas, um curso de capacitação de novos brigadistas voluntários será iniciado nos próximos dias. Há, atualmente, 153 brigadistas envolvidos no controle do fogo no Xingu.
Desmatamento da Amazônia
Imagem de drone de queimada no Xingu (Foto: Takumã Kuikuro)
O desmatamento da Amazônia é a causa da seca extrema, da falta de chuvas e, por consequência, do fogo mais forte, afirma o professor doutor em Ciências da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Sérgio Roberto de Paulo.
“Cientistas do Brasil trabalham com as questões ambientais há décadas, então já existe uma experiência em compreender esses fenômenos, particularmente os relacionados à Amazônia”, principia ele. “Temos dois fatores principais que levam à escalada desse processo de períodos em que a seca é cada vez mais intensa. O principal é o desmatamento da Amazônia. O outro é a emissão de aerossóis.”
A partir dos anos 1970, o solo do Mato Grosso passou por um período de intensa transformação. E essa mudança avançou no entorno da Amazônia. Boa parte da vegetação natural, tanto de cerrado quanto de floresta, foi substituída pela agricultura.
“Sabemos que a vegetação é importante para retenção de água no solo. As plantações também fazem isso, mas como são baixas a evaporação é maior. Além disso, para chover são necessários núcleos de condensação de pequenas partículas nas quais as moléculas de água se juntam formando uma gota. As plantas e árvores emitem esses aerossóis e as plantas agrícolas, não. Queimadas também emitem aerossóis só que, do contrário, inibidores de chuva, na verdade dispersam chuva. Toda vez que tem fumaça no ar, ela vai inibir a chuva”, explica Roberto de Paulo.
Impactos no pantanal
Queimadas na Terra Indígena do Xingu (Foto: Takumã Kuikuro)
Os incêndios descontrolados do ano passado queimaram 4 milhões de hectares do pantanal em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Uma tragédia que, segundo pesquisadores, já era anunciada, mas não foi criada infra-estrutura preventiva.
A professora da Unemat Carolina Joana, doutora em Ecologia, explica que estudos científicos apontam que secas extremas no Pantanal vão ocorrer por 5 anos sequenciais – iniciadas em 2020 se estenderão até 2024. E que uma forma de evitar a expansão do fogo é estudando o movimento dos ventos.
“O pantanal é água e não tendo água o fogo toma conta. No ano passado, nós pesquisadores já sabíamos que seria grave, mas não da extensão e do efeito que teria”, relata Carolina Joana. Houve, desde então, uma força-tarefa do governo com a participação da sociedade civil organizada para tentar evitar outra tragédia este ano. Além deste esforço conjunto, ela sugere mais pesquisas. “Temos pontos que ainda não conhecemos com uma base mais científica, como a questão (o movimento) dos ventos e isso precisa ser estudado.”
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