O falecimento aconteceu no dia 19 de março. O velório avançou madrugada adentro. Muita gente, incluindo pessoas idosas, chegaram de noite e passaram a madrugada velando o corpo de Dona Lusia dos Santos Lobato, de 87 anos. A liderança indígena, cuja história de vida se confunde com a da luta pelo reconhecimento dos direitos do povo Borari, era muito querida na Vila de Alter do Chão, localizada na cidade de Santarém, oeste do Pará.
A confirmação por parte da Secretaria de Saúde do Estado do Pará (Sespa) que Dona Lusia morreu por coronavírus gerou medo e receio; parentes e pessoas que tiveram contato entraram em quarentena. Mas gerou também desconfianças por parte da família, que reluta em acreditar na morte como decorrência do novo coronavírus. Ela foi a primeira pessoa indígena vítima da doença Covid-19 no Brasil. Por não morar em aldeia reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), sua morte não consta na estatística do Ministério da Saúde.
Dona Lusia veio ao mundo de forma inusitada. Alter do Chão fica localizada às margens do rio Tapajós, possui belas praias e lagos, a ponto de tornar-se um dos cartões postais mais conhecidos da Amazônia. As famílias do vilarejo viviam de pesca, caça e roçado até meados dos anos 1970, quando começa a abertura de uma via de acesso terrestre entre Alter do Chão e área urbana do município de Santarém.
No verão amazônico (agosto a outubro), os indígenas Borari e demais habitantes do vilarejo aproveitavam da estação de poucas chuvas para se movimentar. Visitavam parentes em comunidades ou cidades próximas e ou viajavam para plantar em áreas de várzea que, com a diminuição dos níveis dos rios, se tornavam particularmente férteis. Foi em um desses traslados que Dona Lusia veio ao mundo dentro de uma canoa, a caminho de Urucurituba, no Amazonas, para onde sua mãe, em estágio de gravidez avançada, ia visitar parentes.
“Apesar de ser filha das águas, minha mãe não sabia nadar”, conta Ludinea Lobato Gonçalves Dias, mais conhecida como Neca Borari, uma das sete filhas de Dona Lusia, também ela importante liderança indígena de Alter do Chão.
Dona Lusia é uma fonte de inspiração para Neca. “Louvo a Deus por minha mãe ter me dado muita força para ser indígena”, diz Neca. Ela relembra, com voz emocionada, o conselho de Dona Lusia: “só toma cuidado porque matam muitas lideranças, e eu não quero ver o seu corpo por aí. Mas vai com força”.
“Alter do Chão tem uma história, que ela é uma aldeia matriarcal. Se tu vier pra Alter do Chão fazer uma pesquisa, vai ver que 70% das famílias são comandadas por mulheres”, explica Neca. Dona Lusia mesma, nunca se casou. Segundo sua filha ela “não admitia ser comandada por homem. Criou sozinha”.
Os indígenas Borari vivem em duas localidades distintas, ambas na região do Baixo Tapajós. O território Borari/Alter do Chão, em fase de identificação pela Funai, é composto por quatro aldeias, são elas: aldeia de Curucuruí, aldeia Caranã, Aldeia de São Raimundo e aldeia Alter do Chão. O outro território é a Terra Indígena Maró, já identificada e demarcada pela Funai. Ali vivem indígenas Borari e Arapiuns, compartilhando o território, que está localizado entre os municípios de Santarém e Parintins.
Neca Borari conta que no início da década de 70, a abertura da estrada para Santarém, criou uma situação inesperada aos moradores: “o turismo trouxe algo que não estávamos preparados: a especulação imobiliária. E isso foi o fim. Aí luta, luta, luta”, relembra, sem deixar de mencionar o clima de medo e violência que dominou a vila, com tiroteios e gente alvejada “que até hoje tem bala no corpo”, diz.
Em 2003, já estava em andamento o processo de auto-reconhecimento de três aldeias Munduruku dentro da Floresta Nacional do Tapajós (a Flona), distante cerca de 3 horas de lancha rápida de Alter do Chão. São comunidades ribeirinhas que se levantam contra a narrativa de embranquecimento e reafirmam sua identidade e luta por direitos. Como muitas vezes formulam os indígenas do Baixo Tapajós, é como um despertar de um sono pesado.
Este movimento se irradiou por todo o Baixo Tapajós, e influenciou os Borari de Alter do Chão. Uma nova fase da organização comunal nascia: reuniões, idas à Brasília, grupos de estudos da Funai. “Então fizemos um cacicado. Mas a gente não se sentia bem, como mulheres, ter o cacicado de homens. Tínhamos o pensamento diferente. E como a gente sabe, que se um grupo não se sente bem, com a liderança, por algum motivo, constituímos um cacicado, só de mulheres, e que representa 180 famílias de Alter do Chão”, reflete Neca.
Trata-se do Núcleo de Mulheres Sapú Borari. Sapú, conta ela, significa raiz. Neca retrata a sua mãe como uma guerreira e festeira, termos que na Amazônia indígena andam de mãos dadas. Rituais são parte da intensa vida destes povos, e a luta para que estes não desapareçam é uma luta por formas de vida diferencia. Dona Lusia, assim, uma das responsáveis pela parte cultural do cacicado, ocupava um lugar de importância nas festas comunitárias, na culinária, nos rituais, na contação das tramas de narrativas e no artesanato indígena.
A recuperação do Sairé, a tradicional festa da vila, teve também a participação de Dona Lusia. “Para os Borari”, conta Neca, “Sairé era o deus que eles adoravam. Só que essa parte foi proibida pelos padres, em 1943”. Dona Lusia conheceu o Sairé antes de sua proibição pela Igreja.
“Foi só em 1960 que o povo se uniu e recomeçou o ritual do Sairé. As danças, e os rituais, sem ser a reza. Era em torno de 20 pessoas”, relembra Neca. Dona Lusia era um dos “comandos” da recuperação da festa, como a denomina sua filha: “tem nossos rituais indígenas, nosso carimbó da Amazônia. E segue todas essas danças que temos aqui. Ela era da reza, mas era mais preocupada com a questão das danças. Ela defendia muito isso daí. Ela dançava. E gostava”.
Histórias dos tempos dos antigos, garante Neca, nunca faltaram no papo com Dona Lusia. Uma das que mais gostava de contar era a do Lago Verde do Muiraquitã, o lago da comunidade. Dona Lusia fez questão de visitá-lo pouco antes de falecer, como que para se despedir. Hoje o local também é objeto de violenta especulação imobiliária.
Foi às suas margens, na Área de Proteção Ambiental, que ocorreu o intenso incêndio em setembro de 2019, destruindo uma área equivalente a 1.647 campos de futebol. A Polícia Civil do Pará, no final do ano, acusou os brigadistas voluntários de Alter do Chão de serem os responsáveis pelo incêndio, mas o Ministério Público do Estado do Pará devolveu o inquérito à Polícia Civil no início de 2020, alegando falhas.
Termino esse texto com o mito do Lago Verde, tal como o contava Dona Lusia, e como nos conta Neca Borari. Ela fala de violências e de sumiço, mas também da persistência da crença na lua e da transfiguração de seres:
O lago é verde porque tem uma história. Há muitos anos, quando nossos antepassados que aqui viviam, eles deram falta de uma índia jovem que sumiu da aldeia. E houve uma procura, uma busca. Alter do Chão, o povo Borari, tem como intercessor, para o criador, para Tupã, a lua.
Até hoje, no meio dessa especulação imobiliária, dessa invasão de outras pessoas, nós não contamos 9 meses para parir, contamos 9 luas. Para tirar a palha das nossas casa, não pode fazer quando está luar. Só plantamos na força da lua. O peixe é mais forte na força da lua.
Os povos se reuniram, com todo o povo Borari, para pedir pra Lua mostrar onde a índia estava. E a lua então, no ritual, respondeu, que ela ia mostrar, que ela ia devolver. Então foram no lago.
Aí na tarde, formou um grande temporal. E viram sair do meio do lago uma árvore, com frutos coloridos que brilhavam como luzes. E essa árvore passeava pelo rio, flutuando. Fez o passeio, e ela retornou de onde tinha saído. Então eles foram ver o que era aquilo.
Aqueles frutos, tinham se transformado. Eles se transformavam em sapos verdes, que formavam um grande tapete no lago. Por isso, Lago Verde dos Muiraquitãs. O nome dessa índia era Naiá. A árvore recebia o nome de Vineira, a árvore dos sapinhos .
Fonte:Entre festa e luta, a vida da indígena Borari vítima da Covid-19
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