Manaus (AM) – “Uns anos atrás tínhamos liberdade. Podíamos andar, caçar, pescar, viajar, transitar nas nossas aldeias e nos nossos parentes, mas hoje as coisas ficaram piores”, relata à Amazônia Real uma liderança do povo Maraguá em conversa que solicita o direito ao sigilo da fonte. Essa liderança e seu povo vivem com medo depois do massacre no rio Abacaxis, ocorrido em 3 de agosto de 2020. Ribeirinhos e indígenas ainda sofrem com a insegurança e com o descaso das autoridades sobre o ocorrido, uma operação policial movida a vingança.
A comunidade dos Maraguá, que fica entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte no estado do Amazonas, foi alvo de uma ação policial desproporcional que resultou na morte de dois indígenas Munduruku na Terra Indígena (TI) Kwatá Laranjal. A família teve acesso apenas ao corpo de um deles – Josimar Moraes Lopes, de 25 anos -, que foi encontrado no rio. Até hoje não foi localizado o corpo de seu irmão Josivan Moraes Lopes, 18. Apenas um crânio humano foi encontrado e levado pela Polícia Federal para análise, afirma Alessandra Rodrigues, tuxaua Munduruku da aldeia Laguinho e tia dos jovens. Para a Amazônia Real , ela afirmou que não houve retorno para a família se essa ossada seria ou não de Josivan.
Josimar Moraes Lopes, 26, cujo corpo foi encontrado no igarapé Bem Assim, na região de Borba (AM); seu irmão Josivan, 18, à direita (Foto: Arquivo Pessoal)
Em documento divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e assinado por diversas instituições como a Arquidiocese de Manaus e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Regional Amazonas, entidades afirmam que a operação no rio Abacaxis fugiu do controle. “Foi perceptível que, desde a operação inicial, o objetivo nunca foi a busca por traficantes, ou por justiça, mas por vingança. Os dias que seguiram, daquele mês, foram marcados por fome, sede, humilhações, prisões ilegais, torturas, assassinatos e diversas outras violações de direitos humanos. Foram dias sombrios e de matança para as populações da região do Abacaxis, com um saldo de oito mortos e dois desaparecidos”, escrevem.
Para reviver o caso e buscar respostas até então não solucionadas, foi realizado o webinário “Um ano do massacre do Abacaxis: Haverá justiça?”, nos dias 3 e 4 de agosto, promovido pelo Cimi, que contou com a presença de lideranças indígenas e ribeirinhos, além de representantes de órgãos do estado do Amazonas e da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR).
A Amazônia Real noticiou o caso na época . No dia 24 de julho de 2020, o ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, foi atingido por um disparo no braço, após adentrar o rio Abacaxis a bordo do barco Arafat. Ele estava praticando ilegalmente a pesca esportiva. Em revide, no dia 3 de agosto, homens identificados como policiais militares entraram com os rostos cobertos nas comunidades localizadas à margem do rio. A alegação para a ação policial foi a de combater o tráfico de drogas na região. Dois policiais foram mortos durante a operação e no dia seguinte o retorno foi com 50 policiais.
A lancha Arafat, que participou de pescaria ilegal e foi usada em operação policial no rio Abacaxis (Foto: Divulgação/Anera)
Segundo a tuxaua Alessandra Munduruku , nunca houve conflito igual a esse na comunidade, que lembra que a Kwatá Laranjal é uma terra demarcada, e não deveria ser utilizada como um ponto turístico para barcos. Pela legislação em vigor, o ingresso em Terras Indígenas deve ser sempre autorizado.
“Eu sou contra o turismo e isso tudo que aconteceu lá dentro do rios Marimari e Abacaxis. Eu tenho certeza que tudo é culpa de turismo por curiosidade. Sabemos que lá eu não aceito turismo no território, nós já temos nossa terra demarcada”, afirma ela. Só que depois do ataque à comunidade, até mesmo o trânsito pela TI virou motivo de insegurança. “Até hoje não me sinto mais segura, eu saio de casa, viajo, mas vivo preocupada, não conhecemos esse pessoal quem é quem, eu tenho receio, medo que eles venham disfarçados e queiram prejudicar a gente também.”
Lideranças Munduruku durante webinário sobre um ano do massacre no Rio Abacaxis (Reprodução YouTube)
Ausência de proteção
Lideranças das comunidades ribeirinhas durante o webnário (Print: YouTube)
Além da TI Kwatá Laranjal e da comunidade do povo Maraguá, os ribeirinhos da comunidade Monte Horebe também foram alvo do ataque e sofrem até hoje com a insegurança. Os moradores reclamam da ausência de apoio dos órgãos e da maneira como foram tratados pelas autoridades públicas de segurança, como afirma Antônio Pereira, presidente da Associação Comunitária de Monte Horebe.
“Colocaram todo mundo como bandido. Nem todo mundo no rio Abacaxis é bandido. Eu conheço todas as pessoas que moram naquele local. Lá não tem bandido. Pedimos o apoio da base móvel da Polícia Federal; faltou essa posição. Aquelas pessoas que morreram lá foram [mortas] injustamente. Os meninos que morreram no Marimari, foram injustos com ele. Certeza disso”, diz.
O líder comunitário explica que chegou a escrever uma carta com o apoio da comunidade, solicitando que uma base móvel da PF fosse instalada na região d rio Abacaxis. O documento foi protocolado e enviado ao Ministério Público Federal, mas ainda não obteve resposta. Antônio Pereira também afirma que todos se sentem inseguros em sair da comunidade. “Esperamos que haja justiça. Esperamos proteção da base móvel da Polícia Federal. Tenho filho, neto, amigos que moram lá, eles precisam estar seguros.”
O MPF do Amazonas informou, por intermédio da Assessoria de Imprensa, que a atuação do órgão no caso “está sendo conduzida por meio de força-tarefa coordenada pelo procurador da Procuradoria Regional da República da 1a Região (PRR1), em Brasília”.
Já a Assessoria de Comunicação do MPF em Brasília afirmou que está aguardando novos andamentos por parte do Tribunal Regional Federal – TRF. “O que temos até o momento é que, após mais de um mês do não cumprimento da decisão do TRF1 sobre o deslocamento de forças federais para a região do Rio Abacaxis (AM), o MPF peticionou pela aplicação da multa no valor de R$ 100 mil por dia de atraso na adoção das medidas, em 16 de julho”.
Tiago Maiká Schwade, da CPT – Regional Amazonas, conta que a mudança dos responsáveis pela investigação foi boa, mas faz uma ressalva: “Aparentemente, isso deixaria os investigadores da PF e do MPF menos sujeitos a pressões locais dos envolvidos nos crimes. Entretanto, não há sinais de que as coisas tenham caminhado”. Outra de suas preocupações é a constante alteração de delegados dentro da estrutura da Polícia Federal no Amazonas.
“A instituição já substituiu o delegado várias vezes. Estamos ao menos no terceiro delegado respondendo pelo caso. Há uma morosidade nas investigações, uma aparente falta de interesse pelo caso. Isso nos angustia e põe uma interrogação sobre o real empenho da Polícia Federal e do Ministério Público Federal em investigar e apresentar os responsáveis”, questiona Schwade. A PF também não retornou o contato da Amazônia Real para falar a respeito do caso.
Apelo internacional
A deputada Joênia Wapichana (REDE) (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
De acordo com o delegado Claudenor Medeiros, titular da 47ª Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de Nova Olinda do Norte, foram instaurados vários procedimentos, com apreciação, desde o início, pelo Ministério Público do Amazonas (MP-AM), segundo informações repassadas pela assessoria da Polícia Civil. Os procedimentos foram encaminhados à Justiça, sendo oficiado à Corregedoria Geral da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM). Cópia dos procedimentos também foram encaminhadas à PF.
A deputada Joênia Wapichana, que participou do evento, afirma que buscou auxílio de entidades também no exterior, pois o que houve em Borda foi uma grave violação dos direitos humanos. “Uma forma de insistirmos nessas denúncias é não deixar de fazê-las. Muitas vezes cansamos de registrar as denúncias, mas isso não pode acontecer. É importante que as vítimas, as comunidades indígenas e comunidades ribeirinhas insistam nas providências, porque isso serve de registro para futura comprovação das omissões”, disse ela, no evento.
Nas comunidades, o medo é visível entre pais e os próprios jovens e crianças que têm de sair para ir à escola e só voltam de noite. “Fico pensando em tudo que aconteceu. Não me sinto mais como antes, quando viajávamos tranquilo, sem medo, sem preocupação de nada. Isso nunca tinha acontecido no nosso território, nós nunca vivemos assim traumatizados”, diz a a tuxaua Alessandra à Amazônia Real .
Para os moradores da comunidade Maraguá, que não podem contar com a Funai, pois não têm a terra demarcada, sobrou o descaso. “Somos indígenas, vivemos em uma terra tradicional, onde sempre foi a nossa terra, uma terra onde acreditamos que Monã criou todas as coisas, inclusive o povo Maraguá. Sempre trabalhamos em coletivo, tínhamos a liberdade de sair sozinho, trabalhar, mas hoje os invasores que estão ali dentro são muitos, não tem mais como fazermos isso”, desabafa a liderança Maraguá.
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