A criação e defesa de áreas protegidas é um componente importante de qualquer estratégia para conter o desmatamento. As “áreas protegidas” no Brasil incluem tanto Terras Indígenas, que estão sob a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e Unidades de Conservação, que estão sob o Ministério do Meio Ambiente (MMA) se federais, ou sob a responsabilidade dos órgãos equivalentes ao nível estadual se criadas pelos governos estaduais. Desde o advento do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em 2000, as Unidades de Conservação são classificadas nas categorias de “proteção integral” e “uso sustentável” [1].
A primeira categoria é para vários tipos de parques e reservas que excluem residentes humanos, enquanto a segunda categoria inclui florestas para manejo florestal, “reservas extrativistas” para seringueiros e outros coletores de produtos florestais não madeireiros e “reservas de desenvolvimento sustentável” com ribeirinhos e outros residentes tradicionais. A sobreposição às vezes ocorre entre territórios Indígenas e unidades de conservação, levando a conflitos entre órgãos governamentais e entre as populações residentes e os órgãos. Um caso em questão é uma floresta nacional (para manejo florestal) que foi criada no rio Tapajós sem considerar os moradores Indígenas Munduruku, que lutam para ter a área declarada como Terra Indígena [2].
As áreas protegidas têm um efeito significativo na prevenção do desmatamento [3-6]. A localização em relação ao arco de desmatamento é importante neste efeito [7], e a defensibilidade dos locais escolhidos deve ser um critério essencial na seleção de áreas [8]. A categoria de uma área protegida, juntamente com o seu nível estadual ou federal, afeta a eficácia da reserva na prevenção do desmatamento [9]. Efeitos de localização e pressões políticas podem obscurecer essas diferenças [10]. As terras Indígenas têm o melhor histórico de exclusão do desmatamento [11] No caso do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), que criou e fortificou uma série de unidades de conservação a partir de 2002 para cumprir o objetivo de proteger 600.000 km2 da floresta amazônica, foi mostrado que as reservas implicam em uma redução do desmatamento [11, 12].
Os locais podem ser selecionados para criar barreiras a fim de bloquear o avanço do desmatamento. Por exemplo, em 2004, um “mosaico” de 30.000 km2 de áreas protegidas foi criado pelo Estado do Amazonas para bloquear a entrada do desmatamento a partir de Mato Grosso. Outro exemplo é a “zona blindada” ao longo da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). Supõe-se que as áreas protegidas nesta zona atuem de maneira semelhante à blindagem de um tanque de guerra para evitar que o desmatamento perfure a barreira de reservas paralela à rodovia. Embora as próprias reservas possam resistir ao desmatamento, estradas laterais planejadas cortando-as simplesmente levariam os desmatadores a áreas desprotegidas para além da linha de “blindagem” [13]. As reservas são necessárias na grande área que estaria exposta a essa migração ao oeste do rio Purus [14]. Da mesma forma, novas reservas são necessárias em Roraima em áreas que receberiam migrantes do arco do desmatamento como resultado da abertura da BR-319 [15].
A criação de áreas protegidas é, em muitos casos, uma questão de “agora ou nunca mais”. Depois que a população se desloca para uma área e reivindica a posse das terras, torna-se politicamente impossível criar áreas protegidas. Uma das escolhas que sempre precisa ser feita é entre priorizar a criação de áreas na categoria de proteção integral versus a de uso sustentável. Por ser muito mais fácil obter apoio político e local para a criação de áreas de uso sustentável, muitas vezes elas atendem melhor ao objetivo de obter grandes áreas de floresta protegida dentro de um prazo que evita a perda da opção de criar uma unidade de conservação [16]. Dependendo das circunstâncias, a criação de unidades de conservação de proteção integral também pode causar injustiças sociais.
No entanto, também é possível ir longe demais na direção da proteção reduzida para angariar apoio. O SNUC inclui como um de seus tipos de área protegida a “área de proteção ambiental” (APA). Esse tipo, na prática, quase não possui restrições de uso, mesmo incluindo áreas urbanas. A criação de APAs resulta em mapas com grandes áreas coloridas em verde, mas faz pouco para realmente proteger a floresta. Em vez disso, oferece uma fuga fácil para grupos de interesse que pretendem evitar as restrições de uma área protegida, uma vez que eles sempre podem exigir que uma área protegida proposta seja uma APA em vez de um dos tipos com mais proteção verdadeira (por exemplo, [17, 18]).
A redução de área, redução de categoria e extinção de áreas protegidas é um fenônimo mundial [19, 20], e essa ameaça é especialmente evidente no Brasil ([21, 22] Exemplos na Amazônia incluem uma proposta (Projeto de Lei 6024/2019) para rebaixamento do Parque Nacional da Serra do Divisor para uma área de proteção ambiental (APA) e a redução do tamanho da Reserva Extrativista Chico Mendes [23, 24]. Outro exemplo é o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, na rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), por onde passaria a planejada rodovia AM-366, abrindo para a invasão a vasta região do “Trans-Purus” [25]. Outro exemplo é uma proposta de conversão da Floresta Nacional do Jamanxim na rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá) para permitir a passagem da ferrovia planejada FerroGrão [26]. O “massacre de motosserra” de 2018 em áreas protegidas em Rondônia ilustra a magnitude de tais ameaças às áreas protegidas [27]. O governo Bolsonaro tem uma lista de 67 áreas protegidas que são alvos para redução[28]. [29]
A imagem que abre este artigo mostra mostra área de desmatamento em unidades de conservação. Nesta foto, fogo no buffer (5km) da TI Munduruku Taquara (Foto Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Amazon Watch/17/09/2020)
[1] MMA (Ministério do Meio Ambiente) 2015. Cadastro Nacional de Unidades de Conservação . MMA, Brasília, DF.
[2] Fearnside, P.M. 2016. A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós . Amazônia Real.
[3] Ferreira, L.V., E. Venticinque & S.S. de Almeida. 2005. O desmatamento na Amazônia e a importância das áreas protegidas . Estudos Avançados 19(53): 1-10.
[4] Ricketts, T.H., B. Soares-Filho, G.A.B. da Fonseca, D. Nepstad, A. Petsonk, A. Anderson, D. Boucher, A. Cattaneo, M. Conte, K. Creighton, L. Linden, C. Maretti, P. Moutinho, R. Ullman & R. Victurine. 2010. Indigenous lands, protected areas, and slowing climate change . PLoS Biology 8: art. e1000331
[5] Veríssimo, A., A. Rolla, M. Vedoveto & S.M. Futada (eds.). 2011. Protected Areas in the Brazilian Amazon: Challenges & Opportunities . Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia (IMAZON), Belém, Pará & Instituto Socioambiental (ISA), Brasília, DF.
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[13] Fearnside, P.M., P.M.L.A. Graça, E.W.H. Keizer, F.D. Maldonado, R.I. Barbosa & E.M. Nogueira. 2009. Modelagem de desmatamento e emissões de gases de efeito estufa na região sob influência da Rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319). Revista Brasileira de Meteorologia 24(2): 208-233.
[14] Fearnside, P.M., P.M.L.A. Graça, E.W.H. Keizer, F.D. Maldonado, R.I. Barbosa & E.M. Nogueira. 2009. Modelagem de desmatamento e emissões de gases de efeito estufa na região sob influência da Rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319). Revista Brasileira de Meteorologia 24(2): 208-233.
[15] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho) .In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.
[16] Fearnside, P.M. 2011. Strategies for social and environmental conservation in conservation units . In: M. Pinedo-Vasquez, M.L. Ruffino, C. Padoch & E. Brondizio (eds.) The Amazonian Várzea: The Decade Past and the Decade Ahead . Springer, New York, NY, E.U.A. p. 233-239.
[17] Câmara, I. 2000. Para que servem as APAs? O Globo , 05 de dezembro de 2000.
[18] Pádua, M.T.J. 2011. Do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. In: R. Medeiros & F.S. Araújo (eds.) 2011. Dez Anos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza Lições do Passado, Realizações Presentes e Perspectivas para o Futuro . Ministério do Meio Ambiente, Brasília, DF. p. 21-36.
[19] Bernard, E., L.A.O. Penna & E. Araújo 2014. Downgrading, downsizing, degazettement, and reclassification of protected areas in Brazil . Conservation Biology 28: 939-950.
[20] de Marques, A.A.B. & C.A. Peres 2015. Pervasive legal threats to protected areas in Brazil . Oryx 49: 25-29.
[21] Pack, S.M., M.N. Ferreira, R. Krithivasan, J. Murrow, E. Bernard & M.B. Mascia 2016. Protected area downgrading, downsizing, and degazettement (PADDD) in the Amazon . Biological Conservation 197: 32–39.
[22] Mascia, M.B. & S. Pailler 2011. Protected area downgrading, downsizing, and degazettement (PADDD) and its conservation implications . Conservation Letters 4: 9–20.
[23] Câmara dos Deputados . 2019. PL 6024/2019.
[24] Rodrigues, I. 2020. PL quer tirar proteção integral da Serra do Divisor e reduzir quase 8 mil hectares de Resex no Acre . G1 , 27 de janeiro de 2020.
[25] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai, M.A. Isaac Júnior 2020. Trans-Purus, a última floresta intacta – Amazônia Real.
[26] Chagas, V.C. 2017. Após veto, governo envia ao Congresso novo projeto que reduz floresta no Pará . Agência Brasil , 15 de julho de 2017.
[27] Fearnside, P.M. & P.V. Cruz 2018. Massacre de motosserra para áreas protegidas em Rondônia . Amazônia Real, 28 de outubro de 2018.
[28] Borges, A. 2019. Confira a lista das 67 unidades de conservação que o governo federal quer reduzir . O Estado de São Paulo , 12 de junho de 2019.
[29] Esta série é uma tradução atualizada de: Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon . In: H. Shugart (ed.) Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, EUA.
Leia os outros artigos da série:
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 1 – Resumo da série
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 2 – O que é desmatamento?
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 3 – Por que o desmatamento é importante?
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 4 – Detecção por satélite
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 5 – Ciclos econômicos e especulação imobiliária
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 6 – Commodities e governança
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 7 – Incentivos fiscais e Posse de terra
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 8 – Lavagem de dinheiro, exploração madeireira e mineração
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 9 – Estradas
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 10 – Soja
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 11 – Pecuária
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 12 – Crescimento populacional e Dinâmica doméstica
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 13 – Degradação extrema
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 14 – O aumento do desmatamento pós-desaceleração
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 15 – Controle por meio da repressão
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 16 – Remover ou redirecionar subsídios
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 18 — A Moratória da Soja
O Desmatamento da Amazônia Brasileira: 19 – O Acordo da Carne
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