Brasília (DF) – Depois de quatro vezes adiado nos últimos dois meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento mais importante da história recente para todos os povos indígenas do país: o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que vai tratar do marco temporal. No entanto, para a frustração dos mais de 6 mil indígenas do Acampamento Luta Pela Vida que aguardavam em frente do prédio do STF, a continuidade do julgamento foi adiada para a próxima quarta-feira (1º). A pauta só começou a ser analisada após a decisão sobre a autonomia do Banco Central, por volta das 16h30, mas essa parte da sessão só durou 22 minutos, depois da leitura do resumo do relatório do ministro Edson Fachin, que já havia declarado seu voto contrário à tese em junho. O presidente Luiz Fux justificou a impossibilidade de continuar devido ao tempo necessário para que sejam ouvidas as sustentações orais de 38 advogados.
O Acampamento Luta Pela Vida, instalado ao lado da Esplanada dos Ministérios, está previsto para acontecer até sábado (28). Indígenas de 176 povos vindos de todas as regiões do país encontram-se acampados nas proximidades do STF, participando de várias agendas: reuniões, plenárias e atos. Segundo a assessoria de imprensa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib , o movimento vai seguir mobilizado, mas provavelmente de outra forma. Outras organizações analisam continuar no acampamento, e tomarão uma decisão até sábado. Há também grupos que deverão permanecer em Brasília para participar da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas, que acontece entre 7 e 11 de setembro.
No Acampamento Luta pela Vida, o início da noite desta sexta-feira foi de manutenção da postura de luta e também de entusiasmo. “Temos condições de ganhar. Tenho certeza da nossa vitória. Vamos enterrar de vez o marco temporal”, afirmou o coordenador jurídico da Apib, Eloy Terena, que fará uma das sustentações orais no STF. Ele acredita que o tamanho do acampamento neste ano contribuiu para que a matéria entrasse na pauta do STF. Este está sendo considerado o maior movimento indígena já realizado no Brasil, superando o número de povos presentes no processo da Assembleia Nacional Constituinte, nos anos 1980.
Porém, Eloy Terena ressaltou a importância da manutenção das mobilizações. Isso não significa necessariamente que o acampamento na capital permaneça no mesmo formato. No Levante pela Terra, quando os indígenas estiveram entre os dias 8 e 28 de junho na capital federal, o coordenador-executivo da Apib, Kretã Kaingang, disse que nos Estados, cerca de 100 mil índios fizeram manifestos como barreiras em estradas ou manifestações em cidades. As notícias em redes sociais alcançaram 12 milhões de pessoas.
O coordenador jurídico da Apib explicou que 38 advogados farão sustentação oral no julgamento, entre eles 21 contrários ao marco temporal , 12 favoráveis e cinco que são partes do processo, como o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto, responsável pela defesa dos Xokleng , no processo da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, e de advogados de instituições governamentais envolvidas.
Eloy Terena estima que as sustentações orais possam durar entre três a quatro horas. Na plenária realizada após a decisão do STF de transferir para a próxima semana, o advogado explicou os procedimentos aos demais indígenas. Ele contou que, após as sustentações, o relator dá o seu voto. E é seguido por outros nove ministros do pleno. O relatório de Edson Fachin já é público e tem 109 páginas. Mas, provavelmente, ele não lerá todo o documento. Depois, os outros ministros votam, a começar pelo mais novo até o mais velho. Poderá também haver pedidos de vistas e dependendo do tempo usado pelos ministros para as falas, o julgamento pode ultrapassar a quinta-feira. Não há, assim, certeza sobre o dia que se encerrará.
Eloy Terena, no Acampamento Luta pela Vida (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
Antes de começar a falar na plenária, o coordenador jurídico da Apib foi homenageado por seu povo, com realização de ritual por guerreiros, xamãs e benzedeiras. Os Terena fizeram uma rara cerimônia do fogo, que acontece tanto por morte como por vitórias. Foram dois acontecimentos nesta quinta-feira (26). A morte da mãe de um dos guerreiros na aldeia Cachoeirinha (MS), para que sua alma seja levada pelo fogo, vento e encantados, e pela vitória no STF.
O acampamento indígena em Brasília é um momento de contínuo debate político, especialmente sobre projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, com decisões anti-indígenas especialmente na Câmara. Durante a quinta-feira, o assunto foram as eleições de 2022. A coordenadora executiva da Apib, Sônia Guajajara, abriu os debates dizendo que a deputada Joênia Wapixana (Rede-RR) é “a única voz legítima indígena no Congresso, enfrentando leões, sendo muito atacada naquele ambiente hostil de muita disputa”. Ela disse que as comunidades têm condições de lançar candidaturas próprias e projetou a eleição de 10 nomes para a Câmara Federal no próximo pleito.
Diversos indígenas eleitos estão no Acampamento Luta pela Vida, alguns com até cinco mandatos em Câmaras de Vereadores. Entre eles estava Marquinhos Xukuru, eleito prefeito de Pesqueira (PE). Ele tenta reverter a impugnação de sua candidatura. Filho de Chicão Xukuru, líder nas retomadas de territórios tradicionais, assassinado em 1998, ressaltou: “Sou fruto do movimento indígena”. Ele disse que sua candidatura foi um processo coletivo de reflexão.
“Assumi a liderança do movimento aos 21 anos. No ano 2000, realizamos uma pesquisa no município e constatamos que 70% dos habitantes eram contrários à luta indígena. Em 2020 fui o candidato mais votado, com 51,6% dos votos”. Ele relatou para explicar a necessidade do trabalho de base, para que a população entenda a necessidade de assumir o protagonismo de sua própria história.
O que é o marco temporal
Região da TI Ibirama- La Klãnõ, onde vivem os Xokleng (Foto Reprodução Facebook)
A matéria trata sobre pedido de reintegração de posse feito pelo governo de Santa Catarina sobre Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, mas que teve status de “repercussão geral” e por isso se refletirá sobre todas as decisões de processos demarcatórios de terras indígenas no Brasil. Um dos argumentos do governo catarinense é o marco temporal, tese segundo a qual somente teriam direito à demarcação de territórios os povos que os ocupassem ou disputassem, física ou judicialmente, antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
A tese se tornou prática usual a partir do julgamento da ação movida contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR). O Poder Executivo passou a usá-la através do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU), que tentava institucionalizá-la como norma nos procedimentos administrativos, suspenso pelo STF, para a decisão que se aproxima.
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