Relatório do Instituto Socioambiental alerta para a falta de impacto nas ações de amparo ao povo Yanomami no primeiro semestre. Foto: Urihi Yanomami
Mais de sete meses depois do Ministério da Saúde declarar situação de emergência em saúde na terra indígena Yanomami, em Roraima, a população local segue sofrendo com o impacto provocado pela presença do garimpo, conforme alertou um relatório elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA). De acordo com os especialistas, a falta de coordenação do governo e a soma de danos provocados na gestão de Jair Bolsonaro impedem as medidas de amparo de fazer efeito significativo.
O surto de fome, malária, intoxicação por mercúrio e doenças respiratórias na terra Yanomami foi reconhecido pelo governo como uma crise humanitária na segunda metade de janeiro, quando o presidente Lula foi até Roraima para averiguar a situação. A comoção gerada com as imagens das mortes no local, somada ao interesse do governo em demonstrar solidariedade aos povos indígenas, resultou no início de uma operação conjunta entre diversos ministérios para tentar amparar a população e enfrentar ativamente a prática do garimpo ilegal no norte da Amazônia.
A ação conjunta foi acompanhada em seus primeiros seis meses pelo ISA, que relatou a falta do atendimento aos objetivos em questão. “A despeito dos esforços já colocados pela administração federal, o caminho para a recuperação territorial e sanitária da TI Yanomami ainda é longo e muitos ajustes precisam ser feitos para que o mínimo de dignidade seja restaurado”, apontam.
Um dos principais aspectos da operação interministerial foi o uso incisivo das forças de segurança, bem como do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), para reforçar ações de enfrentamento ao garimpo ilegal. Apesar do sucesso inicial, a falta de um plano de longo prazo compromete a capacidade do governo em preservar os resultados da operação “Há ainda a persistência de alguns núcleos de exploração que resistem à ação das forças de segurança, além do retorno de alguns grupos de garimpeiros que lograram esconder os seus equipamentos durante as operações”.
Além dos relatos de retorno de parte dos grupos de garimpeiros, muitos dos quais fugiram para a Guiana, o instituto destaca a manutenção da violência dessas células contra aldeias indígenas, muitas vezes utilizando recursos obtidos com facções criminosas. Essa manutenção do garimpo é atribuída a uma série de fatores, um dos principais sendo as sucessivas medidas de flexibilização do estrangulamento logístico aos garimpeiros.
Estrangulamento logístico foi a estratégia adotada pelo Ibama e pelas forças policiais para forçar a saída dos garimpeiros de dentro da terra indígena Yanomami. O espaço aéreo da região ficou restrito a vôos das forças de defesa e segurança, que também instalaram bloqueios nas principais rotas de acesso fluvial e rodoviário. O plano era impedir a entrada de recursos para que os garimpeiros pudessem permanecer no local.
A pressão de parlamentares simpáticos aos garimpeiros, porém, resultou em uma série de concessões que comprometeram gravemente a operação. Durante dois meses, foram mantidos três “corredores”, abertos com a expectativa de permitir com que garimpeiros pudessem abandonar o território de forma pacífica e retornar à legalidade. Também foi revogado o bloqueio aéreo da região, preservando a possibilidade de manutenção do garimpo por meio dos vôos clandestinos.
Além da dificuldade para expulsar os garimpeiros, o ISA também registrou que a política de distribuição de cestas básicas às comunidades indígenas teve pouco resultado. Sem um planejamento elaborado, as cestas básicas acabaram chegando apenas em aldeias bem estruturadas, mantendo desamparadas as comunidades afastadas das principais clareiras e pistas de pouso.
Mesmo nessas aldeias atendidas, faltou a criação de um protocolo para a distribuição dos alimentos, comprometendo ainda mais a capacidade de atendimento. “Uma das reclamações apresentadas foi que a ausência de uma mediação na distribuição levou a um processo de concentração das cestas nas mãos das famílias que deram a “sorte” de estar no local da entrega, no momento em
que a alimentação foi doada”, relata o instituto.
Outro aspecto crítico no combate à crise humanitária é a dificuldade para garantir o acesso dos indígenas atingidos ao serviço de saúde. O aparato de saúde indígena na terra Yanomami sofreu sucessivos cortes ao longo do governo Bolsonaro, o que comprometeu a capacidade das equipes enviadas pelo novo governo. “O resultado final é a manutenção da situação de desistência no conjunto mais amplo da Terra Indígena, apesar da grande mobilização feita diante da publicidade da crise”.
Confira a íntegra do relatório:
https://drive.google.com/file/d/1xRIGFz4n8kLKQGZqHO6IYFtrw75JiSL6/view
Diagnóstico do Congresso
Pouco tempo depois do reconhecimento da crise humanitária, o Senado criou uma comissão externa para averiguar a situação. O colegiado, em sua formação inicial, sofreu forte influência da bancada de Roraima, criticada por sua vice-presidente Eliziane Gama (PSD-MA) pela postura de simpatia às pautas dos garimpeiros.
Sob presidência de Chico Rodrigues (PSB-RR) e relatoria de Hiran Gonçalves (PP-RR), a comissão articulou as principais medidas de flexibilização do estrangulamento logístico, argumentando que maior parte dos garimpeiros ilegais estariam na região por coação de criminosos, e que o governo deveria trabalhar em sua ressocialização.
No relatório final, Hiran Gonçalves preservou seu discurso de remoção pacífica do garimpo. “Precisamos pensar em formas de garantir o autossustento dos indígenas, oferecer aos que garimpavam irregularmente alternativas de ressocialização e aos que, no futuro, pudessem ser cooptados pela ilegalidade alternativas de vida e prosperidade sem relação com atividades ilícitas”, defendeu.
Apesar disso, o documento, aprovado meses após uma reforma na comissão que reduziu o peso dos parlamentares de Roraima, reconhece que poucos resultados foram alcançados seis meses depois de começar a crise humanitária Yanomami. Hiran, assim como o Instituto Socioambiental, chamou atenção para a falta de estrutura no atendimento médico às comunidades indígenas e para a falta de coordenação nas ações de assistência pública à esta população.
“Insistir apenas em soluções emergenciais e em ações espetaculosas seria como tomar apenas analgésicos para disfarçar a dor de uma doença grave, quando precisamos abordar os problemas de fundo que causam esses sintomas. (…) Precisamos racionalizar as políticas de assistência e proteção, perenes, de médio e longo prazos”, argumentou.
Entre as medidas propostas pelo relator, estão justamente a criação de protocolos precisos para as ações de atendimento à população indígena durante crises humanitárias, bem como a reestruturação do aparato de serviço médico para os povos originários na Amazônia.
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