Documento, produzido em meio ao desaparecimento no AM, critica militarização e milhares de cargos vagos
Paulo Saldaña
João Gabriel
BRASÍLIA
Sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), a Funai (Fundação Nacional do Índio) tem implementado uma política anti-indigenista, marcada pela não demarcação de territórios, perseguição a servidores e lideranças indigenas, somada a uma militarização de cargos estratégicos e a esvaziamento de quadros da entidade.
Essas são algumas das conclusões de um dossiê de 172 páginas produzido pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e pela INA (Indigenistas Associados – Associação de Servidores da Funai). O documento aponta esvaziamento orçamentário, assédio institucional, alinhamento com a agenda ruralista e omissões na esfera judicial.
O trabalho é divulgado em meio ao desaparecimento, na região do Vale do Javari (AM), do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
Servidor licenciado da Funai, Pereira era coordenador-geral da área de Índios Isolados até 2019, quando Bolsonaro assumiu o governo. Foi exonerado do cargo meses após a nomeação do atual presidente da fundação, Marcelo Xavier. Para Fernando Vianna, presidente do INA, o caso de Pereira é sintomático do atual esvaziamento da fundação.
“O Bruno tinha uma atuação muito incisiva, combativa, exercia esse caráter protetivo das terras indígenas. E ele foi tirado de onde estava, para falar um português claro, justamente por combater demais”, diz.
“O caso é extremo, o mundo está vendo. No dossiê mostramos que outros servidores também sofreram outros tipos de perseguição”, completou.
Procurada, a Funai afirmou que não comenta dados extraoficiais. “As informações sobre a atuação da fundação estão disponíveis nos canais oficiais do órgão”, argumentou a fundação.
Bolsonaro diz desde a campanha de 2018 que, em seu mandato, não haveria demarcações de terras indígenas. Ele também declarou que daria uma “foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço”.
Não houve, de fato, nenhum avanço nas demarcações desde 2019. O dossiê ressalta ainda que não há meta para isso no planejamento estratégico para 2020-2023 —à exceção dos casos em que houve pressão do Ministério Público Federal. Mesmo na montagem de grupos de trabalho para atender a determinações da Justiça, a Funai tem atrasado processos e remanejando servidores como prática protelatória, acusa o documento.
“As alterações constantes na composição dos grupos de trabalho se relacionam a duas estratégias antidemarcatórias: por um lado, a de escolher politicamente seus membros, para garantir que os envolvidos estejam também comprometidos com ‘nem 1 cm de terras indígenas’ demarcadas; por outro, a de engambelar a Justiça”, diz o documento.
Bolsonaro tentou repassar a fundação ao Ministério da Agricultura, o que foi barrado pelo do STF (Supremo Tribunal Federal). A nomeação para a presidência do órgão de Xavier, delegado da Polícia Federal, é apontada no documento como a forma de alinhar a Funai a interesses ruralistas.
A Funai foi criada em 1967. Mesmo tendo sido estabelecida durante a ditadura militar (1964-1985), a militarização atual do órgão é sem precedentes.
Atualmente, só duas das 39 coordenações regionais da fundação são chefiadas por servidores de carreira. Nas demais chefias, 19 postos são coordenados por oficiais das Forças Armadas, três por policiais militares e dois por policiais federais. No alto escalão, a diretoria é formada por dois policiais e um militar, além do presidente.
Enquanto cresceu a presença de militares na Funai, há esvaziamento das equipes técnicas. O documento mostra que, em 2020, havia mais cargos vagos na autarquia (2.300) do que profissionais em atuação (2.071, sendo 1.717 efetivos).
Soma-se a esse quadro um processo de intimidação tanto de lideranças indígenas como de servidores. Xavier acionou a Polícia Federal contra ao menos três lideranças.
“O mais gritante exemplo de intimidação, no entanto, é a prática do presidente da Funai de lavrar denúncias à Polícia Federal, seu órgão de origem, solicitando a instauração de inquéritos criminais contra servidores”, diz o dossiê.
Também afirma que, em vez de encampar estudos técnicos da equipe da fundação, “o presidente opta por fazer com eles o que também faz com conhecidas lideranças indígenas: tenta criminalizá-los”.
O documento cita caso de um servidor levado à investigação por, ao atender solicitação da Procuradoria da Funai, ter defendido a suspensão de uma sentença judicial que anulava a identificação e delimitação de uma terra indígena.
“Marcelo Xavier não apenas discordou da proposta de contestar a sentença —aceitou, portanto, a anulação judicial da identificação da terra indígena— como determinou que a conduta do servidor fosse denunciada à Corregedoria e à Polícia Federal”, cita o texto.
Há, no documento, a menção ao caso em que que a PF prendeu em março deste ano o coordenador regional em Ribeirão Cascalheira (MT), militar inativo, sob a acusação de intermediar o arrendamento de terras indígenas para pecuaristas.
A expressão “demarcação de territórios indígenas” sumiu do planejamento do governo, ressalta o trabalho. Nem um programa orçamentário específico direcionado aos povos indígenas apareceu no Plano Plurianual ou na Lei Orçamentária.
Segundo as organizações, há 620 processos de demarcações parados na etapa inicial. Além disso, são 117 territórios delimitados ou declarados, mas não homologados.
PARALISAÇÃO
Servidores da Funai do Distrito Federal e de Santa Catarina definiram nesta segunda-feira (13) que farão uma paralisação de 24 horas a partir desta terça (14). A categoria pedia que o presidente da fundação se retratasse sobre falas envolvendo Bruno Pereira e Dom Phillips até às 18h desta segunda, o que não ocorreu.
A decisão dos servidores da Funai foi tomada durante assembleia, em Brasília. Eles também reivindicam a criação de uma força-tarefa interna na região onde o jornalista e o indigenista desapareceram.
O presidente da fundação, Marcelo Xavier, divulgou uma nota em que afirma que “diferente do que vem sendo propagado por veículos de imprensa, tem trabalhado intensamente nas buscas aos desaparecidos”.
“Quatro embarcações são empregadas nos trabalhos, com o envolvimento de 14 servidores. Os pertences das vítimas foram encontrados [no domingo] com auxílio dos servidores da Funai em campo”, diz trecho da nota.
Em resposta a Marcelo Xavier, a INA, que representa os servidores, pediu a saída dele da presidência do órgão.
A declaração do presidente da Funai que revoltou a categoria ocorreu na quarta-feira (8) em entrevista à Voz do Brasil —noticiário oficial do governo— e em nota oficial publicada na sexta (10) no site da Funai.
Ele afirmou que Bruno Pereira e Dom Phillips deveriam ter pedido autorização do governo para entrar na Terra Indígena Vale do Javari. Bruno é servidor de carreira da Funai, mas estava de licença não remunerada. Ele colaborava com a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).
Colaborou Thaisa Oliveira, de Brasília
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